“Onde fica o lugar mais distante para o qual eu poderia viajar, mãe?”, pergunta Tsomo. “Onde? Não sei. Para onde uma garota pode viajar? Talvez tão ao norte quanto o Tibete ou tão ao sul quanto a Índia.”, responde a mãe. Tsomo nasceu no Butão no ano do macaco, um ano não muito bom para se nascer. No seu horóscopo está escrito que ela não acumulou muitos méritos nas suas vidas passadas, mas que ela poderia renascer como homem na próxima vida se praticasse a religião. O astrólogo ainda previu que nessa vida Tsomo seria inquieta, sempre querendo viajar. A mãe agora ri pensando na ironia dessa profecia, afinal, para onde uma garota poderia viajar?
The Circle of Karma, de Kunzang Choden, é assim, um livro recheado de exemplos que ilustram os costumes da sociedade rural no Butão ao longo do século passado. Publicado na Índia, foi o primeiro livro escrito por uma mulher butanesa a sair das fronteiras do país, o que já é um grande acontecimento. Ele narra a vida de Tsomo da infância à velhice. Quando criança, sua vida era tranquila ao lado do pai, que praticava a religião e por isso era bastante respeitado, da mãe, que cuidava sozinha da casa e das plantações sem nunca reclamar, e dos irmãos que ainda estavam vivos, já que vários morriam bem novos. Tsomo sempre quis estudar, o que significava basicamente aprender religião, mas apenas os irmãos homens tinham esse privilégio. Além da vantagem de terem nascido homens, eles ainda tinham a chance de, através dos estudos, acumular ainda mais méritos para a próxima vida! Tsomo acha isso injusto, mas se conforma. Ela sabe que ainda não acumulou méritos suficientes para nascer como um garoto. Sua vida será sempre cheia de privações porque ela é apenas uma mulher.
A desigualdade entre os gêneros é um dos temas centrais do livro. A princípio, uma sociedade na qual o sexo não é visto como tabu e em que os casamentos não dependem de formalidades até parece ser mais moderna, mas a realidade é outra. Mães solteiras ainda são vistas com maus olhos e a violência contra a mulher é comum e tolerada. E as mulheres ainda incentivam essa cultura machista quando alimentam o ódio entre si e se culpam pelas traições dos maridos. Uma história que se repete mundo afora, né?
Tsomo não é uma heroína. Muitas vezes cheguei a sentir raiva quando ela tomava decisões erradas ou mesmo se ficava passiva quando deveria agir. Fiquei até o final do livro esperando que ela realizasse seus sonhos e me frustrei quando ela desistiu de alguns deles. Tsomo é uma pessoa normal, com defeitos e qualidades, e sua vida, assim como a nossa, é feita de altos e baixos. As previsões do astrólogo se confirmam e Tsomo é levada a viajar sozinha para a Índia e para o Nepal, num percurso marcado por pessoas especiais que a ajudam a seguir em frente e por lugares sagrados que a conduzem ao estado espiritual que ela sempre buscou. A justificação de todos problemas da vida através do karma parece gerar um certo conformismo, mas ao longo da história Tsomo vai aprendendo a se conhecer melhor e a gente vai aprendendo a aceitar o mundo diferente a que somos apresentados, mesmo querendo mudar dezenas de coisas nele.
The Circle of Karma é um retrato detalhado da cultura butanesa, do budismo praticado no país e até mesmo da comida local. Quem se cansa com descrições muito detalhadas pode achar o livro um pouco enfadonho, mas essa riqueza de detalhes foi o que mais me fascinou. Para mim foi uma verdadeira imersão cultural e eu me senti transportada ao Butão através das páginas do livro. Eu já tinha muita vontade de conhecer esse país que é um dos mais isolados do mundo e a leitura aumentou e muito o meu desejo. Se não fosse tão caro viajar para lá, com certeza seria o destino das minhas próximas férias!
The Circle of Karma foi publicado originalmente em inglês, em 2005, numa parceria da Penguin Books com a editora indiana Zubaan.
Mais alguns livros de autores de Butão:
- Treasures of the Thunder Dragon, Ashi Dorji Wangmo Wangchuck
- The Hero with a Thousand Eyes, Karma Ura
- Seeing with the Third Eye, T. Sangay Wangchuk
- Coming Home, Pema Euden
Saiba mais sobre o Projeto 198 Livros.
Camila, eu terminei o meu livrinho do Butão. Gostei dos contos. E eu achei meio fácil, como o livro de São Cristóvão e Névis. O negócio é ir mesmo lendo os livros menores. Tô até gostando de ler em inglês mais do que quando comecei.
Viu só? Daqui a pouco não vai ter livro em inglês nenhum te metendo medo. =)
Na época encomendei esse livro junto com The Sand Fish, mas não veio. Acabei de encontrar um outro em kindle, da mesma autora, mas que são de contos (sempre prefiro os romances) e vou ficar com esse dessa vez, porque é sobre a vida das mulheres do Butão. O nome é Tales in Colour and Other Stories. Depois eu digo o que achei! :)
Se tivesse me dito eu poderia te emprestar o meu exemplar! Se quiser, é só falar! =)
Se eu não gostar desse, eu te aviso. Obrigada! :)
Olá Camila! Muito interessante! O primeiro livro escrito por uma mulher butanesa que saiu do país e cheio de detalhes sobre a cultura… Muito me interessa!! Quero ler! E ainda abordando a questão de gênero, que é um pouco polêmica, cheia de nuances e não muito fácil de entender, né… As pessoas no país em geral dizem que ambos os gêneros têm os mesmos direitos, podendo até as mulheres terem vários maridos, não apenas os homens. Além disso, muitas vezes tomam a Índia como comparação para dizer que o Butão nessa questão é igualitário. Vai ser bem rico olhar da perspectiva de uma mulher butanesa, com essa história de vida que você descreveu. Muito agradecida pela resenha e por compartilhar esse seu lindo projeto!!
Sara, acho que para você que teve contato com a cultura local de forma intensa o livro será ainda mais interessante! A questão do gênero é mesmo meio difícil de entender. Em alguns momentos a sociedade parece ser mais igualitária, mas em outros fica claro que a mulher ainda sofre muito. Vou adorar se você ler o livro e depois me contar o que achou!
Camila, depois de tudo o que li sobre esse livro aqui, não resisti e já encomendei o livro. Esse me obrigo a ler me inglês :)
E esse vale o esforço!
Meninas,
Terminei de ler o livro e gostei muito. Foi bom ter lido a resenha da Camila antes para não morrer de raiva de Tsomo, a personagem principal. Já sabendo de antemão que algumas coisas não mudariam, eu não frustei :-)
Está na lista dos meus preferidos, junto com o livro de Mali e da França.
Que bom que você também gostou, Lu! Aprendi bastante com esse livro, tanto sobre o Butão quanto sobre o Budismo. Está na minha lista de preferidos até agora também. :-)
Camila, terminei o livro do Butão esses dias e vim falar um pouco sobre ele. Dos livros que li até agora, esse foi o primeiro realmente editado no seu país de origem, e não uma edição publicada no ocidente.
Dawa, the story of a stray dog in Bhutan, foi escrito pela mesma autora de The Circle of Kharma. Comparando-o com a sua resenha, dá para perceber que os dois livros têm um pouco em comum, pois, nos dois, o personagem central, que é de uma categoria social inferior, tem uma necessidade de viajar, de se lançar ao desconhecido.
Dawa é um cachorro vira-lata, mas tem uma mente privilegiada, pois é a reencarnação de um tradutor, cuja maior frustração na vida fora não poder viajar para os lugares onde eram faladas as línguas que ele traduzia. O resultado é que Dawa entende a língua dos humanos. O livro conta a sua jornada da cidade de Paro, onde ele nasceu e perdeu sua “família” de uma forma trágica, até a capital, Thimphu, e depois a um santuário budista em Bumthang, aonde ele vai em busca de um milagre.
Mas é claro que o objetivo da autora não é simplesmente nos contar de um cachorrinho. O livro tem insights que se aplicam perfeitamente aos humanos: a vida de um cão é o que o cão faz dela, não é determinada pela raça ou por seu passado; poucos conseguem julgar um cão pelo que ele é, e não pela sua aparência. E os cachorros estão organizados em uma sociedade tão complexa – e desigual – quanto os humanos.
Provavelmente, eu teria gostado mais de The Circle of Kharma, mas Dawa… já serviu para me mostrar um pouco do Butão.
Que legal, Wanessa! No fim das contas o livro é bem mais complexo do que uma breve sinopse nos fez supor! E só por contar a história de um cachorro que é a reencarnação de um homem ele já nos mostra um pouco do budismo, né?
Engraçado você ter falado sobre a edição do livro, porque eu tenho pensado bastante nisso. A maioria dos livros que escolhemos até agora não só foram publicados fora do país de origem, mas os autores na maioria das vezes são pessoas que foram estudar fora, na França, nos EUA ou em outro país mais desenvolvido. Essa constatação me deixou bem triste…
Camila, eu também queria ter acesso a mais livros “autênticos” como esse do Butão, que foi editado em Thimphu. Mas acho que é uma exceção ter um livro nessas condições publicado em inglês. Para ter acesso a mais livros editados no seu lugar de origem, só se pudéssemos ler nas línguas locais.
Como a Carla disse no post dela sobre o projeto, o nosso corte abrange só a parte principal do mercado editorial de cada lugar, os livros que chegam a ser traduzidos e divulgados no exterior. Mas, para mim, isso já é muita coisa. Eu provavelmente nunca leria algo escrito no Mali ou em Omã, por exemplo. Talvez nunca tivesse me interessado nem mesmo pelos autores africanos publicados aqui…
Acho que não iríamos ler a grande maioria dos livros que leremos nesse projeto! De qualquer forma será uma experiência fantástica! Ou melhor, já está sendo! :-)
Meninas, de certo modo, o fato de esses autores terem ido estudar no ocidente pode até ter sido o fator que tenha desencadeado essa vontade de compartilhar / divulgar a própria cultura… Claro que todo mundo que vive em um outro país acaba tomando para si um pouco da cultura desse novo país, mas também deixa um pouco da sua cultura no seu novo meio – acho que as publicações desses livros mostram bem isso, né? O importante é a gente sempre lembrar que os livros não são menos “autênticos” por isso, e que o próprio conceito de autêntico é muito questionável…
Carla, eu fico triste não porque ache que os livros sejam menos autênticos, mas porque penso que talvez isso signifique o país de origem não dê condições para que um autor publique um livro ou mesmo que se torne um escritor. Será que isso que eu disse faz algum sentido? rsrs
Acho que teríamos que pesquisar mais a fundo para saber ao certo… Talvez essa nossa impressão só exista porque normalmente dependemos de traduções feitas para o inglês… Fico me perguntando se não teríamos uma oferta muito mais expressiva (ao menos no caso desses países mais “exóticos” para nós) se pudéssemos ler em árabe, chinês, hindi ou russo – tenho quase certeza que sim! ;-) Acho que a nossa percepção fica limitada (e ainda assim menos limitada do que a da Ann Morgan, por exemplo) porque só dominamos algumas poucas línguas ocidentais…
É verdade, Carla! Esse projeto já nos mostrou que apenas uma pequena porcentagem da literatura produzida na maioria dos países é traduzida para outras línguas.
Também fiquei muito instigada. Acho até que vou comprar o livro, pra ler esse também, porque duvido que o meu traga um panorama tão rico da sociedade butanesa.
Qual você escolheu, Wanessa?
Carla, eu, por puro comodismo, escolhi outro livro dessa mesma autora que também estava disponível na Estante Virtual: Dawa, the story of a dog in Bhutan. Só me preocupei em verificar que não é um livro infantil. Uma resenha na Amazon fala que ele retrata a cultura do Butão, mas acho que não tem a profundidade desse que vocês vão ler… Ele é o meu próximo na fila, mas, como estou indo viajar, talvez passe outro do kindle na frente para não ter de levar livros na mala.
(Vi seu comentário sobre The Sand Fish, mas preciso pensar antes de responder… :) )
Rsrsrs… Depois eu me lembrei que você tinha dito que ia ler o livro do cachorro no Butão!
(Pois é, eu também fiquei pensando um tempão sobre essa história do Sand Fish…)
Wanessa, quer meu livro emprestado? Posso te mandar pelo correio!
Obrigada, Camila! Eu vou tentar ler o que comprei e te aviso se achar que ele não é suficientemente representativo do Butão, ok?
Bem que você disse que o livro do Butão ia me encantar, Camila! Sua resenha aguçou a minha curiosidade!
Carla, foi o livro com mais referências culturais até então. E o de Mali não fica atrás!