A nossa ignorância em relação à África chega a ser desconcertante. Não deveria ser assim. Temos tantas semelhanças históricas e culturais com esse continente que seria natural que tivéssemos mais interesse por ele. Sabemos muito sobre a Revolução Francesa ou sobre a Independência Americana, mas crescemos surdos ao que aconteceu no continente africano nos últimos séculos. Provavelmente eu continuaria assim caso não tivesse começado esse projeto. Logo no início das leituras, fiquei extremamente impressionada com o genocídio de Ruanda, principalmente por ter ficado tanto tempo alheia a ele. Agora tive a chance de descobrir um pouco da história de Mali. Em tão pouco tempo, já aprendi que a África não é uma só, como nossa falta de conhecimento nos faz supor, mas um caldeirão de culturas ricas e diversas.
Eu não imaginava que encontraria um livro de um autor malinense disponível em português, mas acabei tendo uma surpresa. Não é que descobri um livro publicado no Brasil? Era Amkoullel, o Menino Fula, de Amadou Hampâté Bâ. Só que o livro estava esgotado em todas as livrarias virtuais e as poucas opções na Estante Virtual custavam preços meio absurdos (R$ 200,00!). Já meio sem esperanças, me lembrei de pesquisar em algumas bibliotecas de Belo Horizonte. Felizmente, o livro estava disponível na Biblioteca Pública Estadual, que faz parte do Circuito Cultural Praça da Liberdade. Acho que foi a primeira vez que entrei numa biblioteca desde que saí da faculdade! Agora, com meu cartãozinho em mãos, espero poder contar com a biblioteca em outras ocasiões ao longo desse percurso!
Amkoullel, o Menino Fula é um relato autobiográfico de Hampâté Bâ, o maior mestre da tradição oral africana do último século. O livro conta sua história desde o nascimento até a juventude. Temi que a narração fosse um pouco chata, pois não se trata exatamente de um romance, mas o enredo é muito mais envolvente do que eu imaginava. Hampâté Bâ aprendeu a apreciar a contação de histórias desde muito cedo, por isso ele pôde nos contar coisas que aconteceram antes mesmo do seu nascimento com uma riqueza de detalhes impressionante. É preciso destacar que até então a África não tinha uma língua escrita e que essa herança era totalmente transmitida de forma oral. Hampâté dizia que “Cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”. É estranho pensar que todo o conhecimento era transmitido no boca a boca, ainda mais num mundo como o de hoje, em que dependemos o tempo todo de informações documentadas, e por isso essa tradição que existia em muitos lugares do mundo me deixou ainda mais curiosa. Hampâté transcreveu muito do que ouviu dos mais velhos e dos griots, os famosos contadores de histórias, para o papel. De acordo com Hampâté, a Primeira Guerra Mundial é que foi a grande causadora da ruptura na transmissão oral dos conhecimentos, já que muitos jovens lutaram ao lado dos franceses, mas foi também a guerra que desfez o mito de que os homem branco era perfeito e invencível.
Hampâté Bâ, ou Amkoullel, como ele era chamado na infância, nasceu na savana africana em 1900, no território em que hoje se situa o Mali. Nessa época os países ainda não estavam divididos como agora. A região se encontrava sob domínio francês, mas os povos ainda conseguiam manter suas tradições. Ele estudou nas escolas corânica e francesa e conheceu bem os dois mundos. Amkoullel era descendente dos fulas, um povo cuja principal ocupação era a criação de gado. A vida dos pais e avós de Amkoullel é uma parte importante da história, como ele destaca ainda no início do livro:
“Na África tradicional, o indivíduo é inseparável de sua linhagem, que continua a viver através dele e da qual ele é apenas um prolongamento.”
Assim como no livro do Butão, os costumes locais ganharam um grande destaque na história. Os malinenses conseguiram preservá-los mesmo após a colonização, apesar da tentativa de enraizamento dos valores franceses que, como todos os colonizadores, acreditavam que sua cultura era superior. Alguns pontos da cultura malinense me marcaram mais. A mãe tinha um papel quase sagrado e um filho honrado nunca ousaria desobedecê-la. Ao mesmo tempo, a relação entre mães e filhos eram bem diferente da nossa, pois as elas não manifestavam seus sentimentos pelos filhos em público. A natureza era vista como ela é, um ente vivo que não pode ser ignorado, e os homens aprenderam a escutá-la. A tolerância religiosa era praticada. A circuncisão era um dos momentos mais importantes na vida de um homem e a cerimônia é descrita em detalhes no livro (a mutilação a que muitas mulheres ainda hoje são submetidas, entretanto, nem é mencionada).
Para deixar o livro ainda mais interessante, ele é cheio de fotos antigas. As construções, as roupas, os hábitos… É tudo fascinante! É claro que eu fiquei morrendo de vontade de ver tudo isso de perto, mas, infelizmente, o Mali enfrenta uma grave crise desde o ano passado e a situação por lá não está nada fácil. Só nos resta torcer para que tudo se resolva o mais rápido possível!
Amkoullel, o Menino Fula foi publicado originalmente em francês, em 1992, e em português em 2003, pela Casa das Áfricas/Palas Athena. A tradução é de Xina Smith de Vasconcellos.
Mais alguns livros de autores malinenses:
- The Strange Destiny of Wangrin, Amadou Hampâté Bâ
- Bound to Violence, Yambo Ouologuem
Saiba mais sobre o Projeto 198 Livros.
Coletivo de pesquisadores (as): Coletivo A Tradição Viva – Amadou Hampâté Bâ
📌 SOBRE:
O Coletivo ‘’A Tradição Viva” – Amadou Hampâté Bâ se formou a partir do encontro de estudiosos (as) e apreciadores (as) do sábio Amadou Hampâté Bâ (1990-1991). Nascido no Mali, Amadou teve – e ainda tem – um papel fundamental enquanto escritor, historiador, etnólogo, filósofo e contador tradicionalista de contos, mitos e lendas, além do fato de que parte de sua história e cultura convergem com aspectos de nosso contexto sócio-político-cultural brasileiro. É por esta razão que nosso coletivo tem como objetivo divulgar seus trabalhos no Brasil, através de apresentações orais, textos escritos e traduções autorizadas de suas obras.
Onde eu cheguei… após ler esta postagem…. O que é e quem compõe o coletivo Amadou Hampâté Bâ?
Um coletivo com oito integrantes: Lorena Faria, Lucas Scaravelli da Silva, Mayara Matsu Marinho, Mohammed Yassin, Antonio Filogenio de Paula Junior, Carlos Barbosa, Dayane Teixeira, Eumara Maciel dos Santos. Comunidade de pessoas envolvidas com a pesquisa, ensino e divulgação da oralidade africana inspiradas pela obra do grande sábio malinês Amadou Hampâté Bâ.
Já é possível encontrar o livro na Amazon (só físico).
É verdade, Tati! Eu vi isso esses dias e fiquei até com vontade de comprar, de tanto que gostei! Vou atualizar o post, obrigada pelo aviso!
Camila, tudo bem?
Venho namorando seu blog há algum tempo e ele me inspirou para fazer uma jornada parecida.
Estou vendo pouco a pouco alguns post seus e programando algumas leituras.
Começo este mês com The Strange Destiny of Wangrin.
Parabéns pela ideia e pelo blog!
Que ótimo, Tiago! Seja bem-vindo a essa jornada! Espero te ver mais por aqui para trocarmos ideias sobre os livros! =)
Bacana esse livro Camila! To quase terminando, e fiz algumas pesquisas das cidades no google, pois nunca tinha ouvido falar delas! No começo da leitura pensei que seria cansativo, mas depois foi prendendo mais e mais a atenção! :)
Pois é, ele parece ter um perfil mais histórico, mas acaba sendo uma leitura bem gostosa. Pelo menos foi o que eu achei :-)
E eu ainda li no laptop pois no kindle o PDF fica minúsculo rsrs. E eu não pude deixar de aproveitar já que você disponibilizou o arquivo! Valeu a leitura sem dúvida!
Do Mali em português , mas em Portugal, pode também encontrar Não arredamos pé de manthia Diawara . Parabéns para esse blogue. Se precusar de mais inspirações, veja também o meu http://www.literaturasafrikanas.blogspot.com
Cumprimentos, Raja
Oi, Raja! Já coloquei seu blog na minha lista de favoritos! Passarei por lá quando precisar de mais dicas de autores africanos!
Sou doida para ir em Mali e ver de perto Tumbuktu!!! Pena estar tão perigoso e sem infra-estrutura… :(
Fê, o que eu fiquei com mais vontade de conhecer foram Djenné e Bandiagara. Vamos torcer para que a situação por lá se resolva e a gente ainda tenha a chance de ver tudo isso de perto!
Pois é, vamos torcer!! :)
Lembrei que tinha este post no meu favoritos, veja que legal: http://raul-frare.blogspot.ae/2011/01/mali-west-africa.html
Bjs!
Que delícia de viagem!
Camila, sobre o Mali, até o nome gera controvérsia: devemos chamar “máli” ou “malí”? Sempre pensei que era “máli”, mas, dada a colonização francesa, parece que “malí” é mais popular. Vi um programa na Globonews sobre os problemas políticos da região, e eles mostravam um pouco do festival do deserto, que me pareceu tão interessante! Pena que não consegui achar o vídeo pra deixar aqui.
Depois de ler o seu post, só fiquei mais curiosa pelo livro do país! Essa frase do autor, sobre cada homem ser uma biblioteca, diz muito sobre a tradição cultural da África, não é?
Sabe que eu não sei qual a pronúncia certa, Wanessa? Não é um nome que a gente ouve muito por aí, né? Eu acabo falando “máli”, mas por pura associação com a nossa língua mesmo.
Eu li sobre esse festival e vi algumas fotos. Parece maravilhoso! Eu fiquei com muita, muita vontade mesmo de conhecer Mali depois desse livro. Já andei dando umas pesquisadas e o turismo no sul do país ainda existe, apesar dos conflitos no norte, mas é um assunto a ser estudado com mais calma. Só sei que Mali entrou no topo dos meus desejos de viagem!