198 Livros: Camboja – À Sombra da Figueira

198 Livros Minha viagem para o Sudeste Asiático foi a primeira desde que comecei minha volta ao mundo através dos livros. Nela eu pude comprovar o quanto essa jornada está sendo enriquecedora. Eu não consegui ler livros de todos os países que iria visitar com antecedência, mas o que li já me ajudou a ter uma visão muito mais profunda dos destinos e me fez sentir conectada a eles ainda antes de embarcar. Eu digo que me apaixonei pelo povo cambojano sem conhecê-lo e isso aconteceu por causa de um livro. Eu já gostava de ler livros sobre os países que planejava conhecer antes mesmo de começar o Projeto 198 Livros, por isso tinha lido havia pouco tempo First They Killed My Father, publicado no Brasil como Primeiro Mataram meu Pai, a autobiografia de Loung Ung, uma sobrevivente do regime de Pol Pot. O livro me tocou profundamente.

É até difícil imaginar que um país consiga ser reconstruído após o que aconteceu no Camboja. Entre 1975 e 1979, o Khmer Vermelho dizimou quase 2 milhões de cambojanos, cerca de 1/4 da população do país. A maioria das pessoas foi assassinada, mas muitas morreram de fome ou de doenças nos campos de trabalho forçados. As cidades foram evacuadas na tentativa do governo de estabelecer uma sociedade totalmente agrária. Qualquer manifestação religiosa foi proibida, a moeda foi abolida, o conceito de propriedade deixou de existir, escolas e hospitais foram fechados. Tentaram até mesmo acabar com as estruturas familiares ao separarem os entes de uma mesma família, tudo para enfraquecer ainda mais as pessoas e erradicar qualquer forma de oposição ao governo. O único vínculo que poderia existir era com o Angkar, a “Organização”.

Ter trabalhado para o governo anterior ou qualquer sinal de uma atividade intelectual servia como sentença de morte. Servidores públicos, médicos, professores, escritores, artistas eram alvos certos. Até o fato de usar óculos era uma desculpa: alegavam que quem usava óculos lia muito! É tão absurdo que é quase impossível imaginar esse cenário. Visitei o Museu do Genocídio em Phnom Penh e pude sentir isso tudo mais de perto. Vi as antigas salas de tortura, as prisões, as confissões falsas que as pessoas eram obrigadas a assinar, as fotos das vítimas antes e depois de serem mortas… É estarrecedor!

O que mais me surpreende é saber que os cambojanos conseguiram manter a doçura depois disso tudo. Eu já tinha me apaixonado por eles simplesmente por conhecer sua história, mas estar lá e descobrir que eles são as pessoas mais gentis do mundo me fez admirá-los ainda mais. Como eles conseguem manter o sorriso no rosto mesmo tendo uma tragédia tão pesada em seu passado recente e vivendo hoje em um país pobre e cheio de problemas? Há algo de sobrenatural no Camboja e é por isso que uma viagem para lá é transformadora. Quem não tem a chance ou a vontade de ir até lá consegue sentir um pouco dessa doçura através dos livros, pois ela é refletida nas palavras de seus escritores.

In the Shadow of the Banyan - Vaddey RatnerAssim como acontece em Ruanda, a maioria dos livros cambojanos atuais são relatos autobiográficos de sobreviventes do genocídio. Isso é natural, afinal, os acontecimentos são muito recentes. Serão necessários anos (décadas, séculos?) para que as feridas cicatrizem. É claro que durante muito tempo a literatura do país  girará em torno desse assunto, mas isso não significa que ela não seja rica. Dessa vez, procurei por um livro de ficção e encontrei In the Shadow of the Banyan, um romance da escritora Vaddey Ratner. Na época ele ainda não tinha sido publicado no Brasil, mas agora já pode ser encontrado aqui com o título À Sombra da Figueira.

O livro é baseado na experiência da autora, mas o fato de não ser uma biografia pura permitiu que ela fizesse as alterações que julgou necessárias para deixar a leitura mais fácil e agradável. Sem contar que ela era muito pequena quando tudo aconteceu e suas memórias poderiam não ser totalmente confiáveis. Como ela mesma diz em uma entrevista transcrita no final do livro, ela não queria falar apenas sobre sua experiência sob o regime do Khmer Vermelho ou sobre suas perdas, mas sobre algo maior, sobre o desejo que as pessoas sentem de continuar vivendo mesmo sob terríveis circunstâncias.

A intenção de Vaddey Ratner com o livro era honrar aqueles que não sobreviveram ao genocídio e ela conseguiu fazer isso brilhantemente. In the Shadow of the Banyan é um livro muito triste, como não poderia deixar de ser, mas é também muito belo. Raami, a voz de Ratner no livro, tinha 7 anos quando Pol Pot chegou ao poder. Seu pai fazia parte da monarquia cambojana e por isso a família era um alvo em potencial para o Khmer Vermelho. O romance relata o que a família sofreu após serem expulsos de Phnom Penh, suas perdas, as separações, a fome, o trabalho forçado, mas o bonito é que o amor que os une é mais forte que tudo isso. Apesar das atrocidades que vivenciaram, seus pais nunca perderam a esperança de que Raami pudesse viver em um mundo melhor.

Ratner conseguiu ainda mostrar um Camboja belo além da tragédia. Ela retrata o país de forma quase poética. Em meio a tanta tristeza, ela encontra espaço para nos mostrar a beleza dos camponeses que trabalham nas plantações de arroz, para nos encantar com o poder do Rio Mekong, capaz de alterar o curso do Tonle Sap, para nos familiarizar com o cumprimento típico dos cambojanos, a sampeah. Sem contar os ensinamentos sobre o Budismo que, apesar de proibido pelo governo, continuou a permear a vida dos cambojanos. Isso tudo tornou a romance mais leve, apesar da tristeza que carrega.

O pai de Raami ensinou muitas coisas a ela através de histórias que depois foram seu refúgio para enfrentar as dificuldades. A importância dessas histórias é enfatizada em várias passagens do romance. Elas seriam capazes de nos fazer viajar no tempo e no espaço e de nos conectar com o restante do universo, com pessoas e seres que nunca vimos, mas que sentimos que existem. Eu não poderia concordar mais, afinal, é justamente esse o objetivo do Projeto 198 Livros.

In the Shadow of the Banyan foi publicado originalmente em inglês pela Simon & Schuster, em 2012. Em novembro de 2015 ele foi publicado no Brasil como À Sombra da Figueira pela Geração Editorial. A tradução é de Sandra Martha Dolinsky.

Mais alguns livros de autores cambojanos:

  • Primeiro Mataram Meu Pai, Loung Ung
  • Crossing Three Wildernesses, U Sam Oeur
  • Music Through the Dark, Daran Kravanh e Bree Lafreniere

Saiba mais sobre o Projeto 198 Livros.

10 Comments

  1. Lucimara Busch

    Oi Camila! Comprei hoje esse livro! Agora vai! :-)

  2. Olá! Se vc recomendasse ler so um, qual dos dois vc indicaria? Beijos

    • Luiza, depende do que você prefere. Se estiver procurando uma leitura mais crua, um biografia mesmo, eu indico o First They Killed My Father. Se quiser uns toques de ficção e uma linguagem mais poética, sugiro o In the Shadow of the Banyan. Ambos contam a tragédia do Camboja muito bem, mas o segundo é um pouco mais leve.

  3. Marina Vidigal Brandileone

    Amei o livro! Uma leitura boa e rápida, porém pesada que me abriu os olhos para uma realidade absolutamente surreal e bruta. Fiquei ainda com mais vontade de visitar o Camboja e de ler outros livros que vc indicou.

  4. Pedro Emmanuel Goes

    Lindo. Agora, existe alguns desses livros citados em edição nacional? Peguei todos que vc citou pra caçar aqui (já quero ler todos) mas só achei em versões em inglês.

    • Pedro, infelizmente não. Descobri com o #198livros que temos pouca oferta de livros estrangeiros no país. As traduções aqui parecem ser mais concentradas no mercado americano e a gente fica sem acesso a muita coisa boa que existe mundo afora. Esses livros do Camboja não foram traduzidos para o português. Mas você tem algum conhecimento da língua inglesa? Se tiver, eu o incentivo a tentar! Eu ainda não sou totalmente fluente no inglês, mas comecei a ler livros em inglês há um tempo (no início, como o dicionário do lado o tempo todo!) e vi que com o tempo foi ficando muito mais fácil. :-)

  5. Camila, livro bem escrito e bom de ler, apesar da tragédia que descreve. E que capa é essa minha gente! Linda demais!

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