Um dia desses eu disse no twitter que o melhor do #198livros era ter a chance de conhecer autores que de outra forma eu provavelmente nunca leria. Mas eu estava errada. Na verdade, a melhor parte desse projeto é poder conhecer o mundo e perceber que ele é bem menos homogêneo do que eu imaginava. Ainda há muito espaço para diferenças e cada sorteio me traz diversas surpresas. O mais legal é descobrir cada país, suas cores, raças, histórias, paisagens, crenças, costumes. E às vezes até mesmo descobrir que um país existe. Foi o que aconteceu com Comores.
Comores? Isso é um país? A única coisa que eu pude adivinhar pelo nome, baseada apenas na sonoridade, é que provavelmente seria um país africano. Pelo menos isso eu acertei. As Comores são três pequenas ilhas localizadas no Oceano Índico, entre a costa de Moçambique e a ilha de Madagascar. Se você, como eu, também não sabia nada sobre Comores, não se recrimine, afinal, estamos falando de um dos países menos visitados do mundo.
Já deu para adivinhar que encontrar um livro de Comores não seria tarefa fácil, né? Mais uma vez me ressenti por não falar francês, já que essa é uma das línguas oficiais de Comores, junto com o árabe e com a língua local, o shikomor. Em português seria uma tarefa impossível, mas mesmo em inglês minhas pesquisas não davam em nada, assim como aconteceu com Palau. POr falar nisso, você conhece algum livro de um autor palauense? Por favor, me conte!
Quando isso acontece, eu corro para ver como a Ann Morgan resolveu a situação. Vi que ela havia lido uma tradução do livro Le Kafir du Karthala, do escritor comorense Mohamed Toihiri, feita por Anis Memon, um professor da Universidade de Vermont. Só que esse era um trabalho pessoal dele e a tradução do livro do francês para o inglês não foi publicada. (Veja minha atualização sobre o assunto ao final do post, mas já adianto que o livro foi publicado sob o nome The Kaffir of Karthala.)
Não custava nada tentar a mesma sorte, então encontrei o e-mail dele na internet e enviei uma mensagem explicando a situação. Memon foi muito gentil e rapidamente me enviou o arquivo com sua tradução para que eu pudesse ler. E foi assim que chegou às minhas mãos um livro de Comores, país sobre o qual até pouco tempo eu não sabia absolutamente nada.
The Kaffir of Karthala conta a história do Dr Idi Wa Mazamba, um médico muçulmano inconformado com as convenções da sociedade em que vive. Idis se envolve com Aubéri, uma professora francesa judia que vive em Comores. Eles se conhecem logo após ele descobrir que tem um câncer incurável e que vive seus últimos meses de vida. A relação dos dois é o pano de fundo para que o autor nos apresente seu país. Através da vida de Idi vamos conhecendo a cultura comorense. Apesar de pequenas, cada uma das três ilhas do país (Grande Comore, Mohéli e Anjouan) tem seus próprios costumes. Existe inclusive uma certa rixa entre os moradores das diferentes ilhas, gerada por preconceitos e ignorância de todas as partes, de acordo com Idi.
Uma das tradições de sua ilha que Idi abomina é o “Grande Casamento”, um dos momentos mais importantes na vida do homem comorense. É uma festa que dura cerca de uma semana e que acontece independente de o homem já ser ou não casado, com a atual ou com uma nova esposa. Nessa festa é gasta uma enorme quantia de dinheiro. Aqueles que ainda não tiveram seu “Grande Casamento” não são respeitados na comunidade. Visitar Meca, de preferência várias vezes, também é sinônimo de status. A intenção disso tudo, é claro, é a ostentação de riqueza e é em relação a essa valorização das aparências que Idi se revolta.
O livro deixa clara a segregação que existia entre a população local e os franceses que viviam em Comores (o país só ficou independente da França em 1975). A discriminação e o preconceito são marcantes, mas pelo jeito isso não impedia os colonizadores de se envolverem com os comorenses. Os casos de pedofilia parecem ser comuns e os estrangeiros se envolvem com as mulheres locais, mas casos como o de Idi e Auberi, de um homem negro com uma mulher branca, são um verdadeiro escândalo. Uma das partes mais marcantes do livro para mim acontece quando eles vão à África do Sul e se deparam com o apartheid. A separação forçada a que o casal é submetido é brutal e acaba tendo um desfecho inesperado.
Karthala é o nome de um vulcão da Grande Comore e o ponto mais alto do país. Já Kafir tem vários significados. “Infiel”, de acordo com o Alcorão, “negro” (de forma pejorativa) para os sul-africanos e “marginal” para os comorenses. Idi assumiu cada um desses papéis em diferentes momentos, mas principalmente o papel de marginal, por se colocar à margem das normas sociais em que vive. A expectativa da morte próxima, em vez de entristecê-lo, faz com que ele enxergue a vida de forma diferente e até mesmo alegre. Esse desprendimento transforma Idi numa espécie de herói que luta contra a corrupção e a hipocrisia que assolam Comores. Le Kafir du Karthala é leve e envolvente, apesar de abordar alguns temas pesados. Não vi o tempo passar enquanto passava as páginas do livro. Para quem quer conhecer um pouco sobre esse pequeno país africano, é uma excelente opção!
Le Kafir du Karthala foi publicado originalmente em francês, em 1992, pela Editions L’Harmattan. A tradução para o inglês que eu li é de Anis Memon, mas infelizmente ela não está disponível comercialmente.
ATUALIZAÇÃO: A Nadia Ramanauskas deixou nos comentários a excelente notícia de que a tradução feita pelo Anis Memon foi publicada, de forma independente, em 2018 e já pode ser encontrada sob o título The Kaffir of Karthala na Amazon.
Saiba mais sobre o Projeto 198 Livros.
Olá Camila,
Eu acabei de sortear o Comores para o meu Projeto 198 livros, e gostaria de atualizar todos que encontrei na Amazon a tradução dele para o inglês que foi publicada em 2018 pela Createspace Independent Publishing Platform com a tradução de Anis Memon.
Que boa notícia, Nadia! Vou colocar a informação no post.
Olá Camila, embarquei nessa viagem também e empaquei como você em Comores. Será que tem como você me passar o contato desse professor ou mesmo o arquivo?
Obrigada por ter me dado essa ideia brilhante de ler um livro de cada país :)
Uai, Carla! Tava aí lendo os livros caladinha? Me conta aí quais você já leu! Sobre o livro de Comores, vou te mandar um email!
Pois é, comecei esse ano, dando uma grande adaptada no projeto, mas mantendo a essência que é ler um livro de cada país. Resolvi ler 10 livros por ano, para poder manter minhas outras leituras também e fiz um sorteio diferente também. Comecei a ler com Cabo Verde, que escolhi o mesmo que o seu. Estou adiantando as pesquisas enquanto estou em férias da faculdade. Vou esperar seu email.
Oi Camila
Mais cedo ou mais tarde eu pego carona nesse projeto com vc! Tà realmente demais!
Quanto a Palau, vc jà tem alguma coisa em mente?
Eu andei pesquisando e nao encontrei nada que preencha os teus requisitos, mas um livro palauense me deixou curiosa, mais por causa do autor do que por causa do livro.
Jà ouviu falar de “Heritage Belau” de John O.Ngiraked?
O autor era um politico importante em Palau, candidato à presidencia, e que foi condenado, em 1993, à prisao perpetua pelo assassinato do rival e entao presidente Haruo Remeliik.
Como esse livro foi publicado em 1999 , deve ter sido escrito na prisao, mas nao tenho nenhuma pista sobre o tema do livro nem como encontra-lo.
http://library.palau.edu/cataloging/servlet/presenttitledetailform.do?siteTypeID=-2&siteID=&includeLibrary=true&includeMedia=false&mediaSiteID=&bibID=13743&walkerID=1389695395990
Boa sorte nas buscas!
Bjs
Luisa, até agora nada de Palau! Eu não tinha encontrado nem o “Heritage Belau” ! Estou pesquisando agora, mas realmente não parece ser fácil de encontrar. Já que não há nenhum livro, resolvi esperar e deixar Palau para depois. Se até o final do projeto eu não conseguir nada, aó leio um livro de um autor estrangeiro sobre o país. Mas ainda tenho esperança! :-)
Camila, ainda não cheguei em Comores e estou curiosa com o livro! Já tinha ouvido falar do país, mas tive que olhar no mapa para saber a localização exata!
Lu, eu sabia que já tinha ouvido falar de lá, mas não sabia absolutamente nada sobre Comores! Por isso esse projeto é tão legal! =))