Às vezes é difícil fugir do óbvio. Moçambique me deu várias opções de leitura interessantes, mas não consegui resistir. Eu poderia ter usado a oportunidade para conhecer e divulgar outros autores do país, mas a verdade é que eu queria ler Mia Couto há muito tempo. Sabe aqueles livros que a gente quer muito ler, mas que acabam ficando para depois e depois e depois? Era esse o caso. Eu já era fã de Mia Couto mesmo antes de ter lido algum de seus livros, apenas por causa de entrevistas e textos não-literários dele espalhados por aí. De certa forma, ele é hoje um dos maiores divulgadores de Moçambique no mundo, o que já seria motivo suficiente para que uma de suas obras fizesse parte do #198livros. Sem contar que o que parece óbvio para mim não é óbvio para todos. Há poucos dias, por exemplo, li em um dos Cadernos de não-ficção da Não Editora que muita gente pensa que Mia Couto é uma mulher negra, então é claro que nem todo mundo conhece Mia Couto.
A literatura lusófona (além da brasileira, é claro) parece ser pouco difundida por aqui e eu estou adorando ter a chance de conhecê-la melhor. Até agora ela me trouxe ótimas surpresas, como o excelente livro de Timor Leste e agora o de Moçambique. Difícil foi escolher um único livro de Mia Couto. Fiquei com vontade de ler quase todos! Na dúvida, fui no mais recomendado: Terra Sonâmbula. A expectativa era grande, o que pode ser o primeiro passo para a decepção, mas tentei esvaziar minha mente antes de começar a leitura e acho que funcionou!
Terra Sonâmbula nos apresenta duas histórias paralelas. A primeira é a de Muidinga, um garoto salvo da morte por Tuahir. O velho ensina o miúdo a viver novamente, pois Muidinga havia se “meninado outra vez”. Os dois se refugiam num machimbombo (ônibus) incendiado e encontram os cadernos de Kindzu. Em meio à desolação que os cerca, num mundo em que o que mais se assemelha à vida ao redor deles são os cadáveres carbonizados encontrados no machimbombo, os cadernos são um alento que os afasta da solidão. Eles mergulham naquelas páginas e nós vamos juntos com eles conhecer os relatos da vida de Kindzu, a segunda história do livro.
A vida de todos os personagens de Terra Sonâmbula é profundamente atingida pela guerra civil que assolou Moçambique durante 15 anos e que começou logo após o país tornar-se independente de Portugal, em 1975. Muidinga e Tuahir vagueiam por uma terra abandonada, por um país que parece vazio depois que a maioria dos habitantes foi arrastada para os campos de batalha. Não sabemos nada sobre o passado dos dois, apenas o presente no qual eles lutam para sobreviver a cada dia. Presenciamos a evolução do relacionamento dos dois, enquanto um vai aprendendo a ser pai e o outro a ser filho. Já Kindzu partiu de sua casa quando a guerra começou a se aproximar com o desejo de se juntar aos naparamas, os guerreiros místicos que “lutavam contra os fazedores de guerra”. Através de seus cadernos, narrados em primeira pessoa, é como se conseguíssemos nos aproximar dele de forma mais fácil. E mais não digo, que é para não estragar a leitura de ninguém!
“Foi o que fez essa guerra: agora estamos todos sozinhos, mortos e vivos. Agora já não há país.”
Em Terra Sonâmbula Mia Couto nos apresenta a guerra de Moçambique através dos olhos das pessoas comuns, das que estão longe dos combates, mas sofrem suas consequências. Esse povo mal sabe o que está acontecendo no mundo político, mas se vê abandonado, à mercê de criminosos, vivendo em uma terra arrasada, passando fome. Conhecemos também um pouco do imaginário do povo moçambicano, suas crenças e sua fé. A fantasia se mistura à realidade tanto no mundo de Kindzu quanto no de Tuahir e Muidinga. E não falta o racismo, essa praga que existe no mundo todo e que no livro não se restringe à relação negros x brancos, mas também aos preconceitos dos negros em relação aos imigrantes, como Surendra, o amigo indiano de Kindzu.
Um sinal de que um livro nos marcou é terminá-lo querendo ler mais obras do autor. E Terra Sonâmbula me deixou com ainda mais vontade de ler os outros livros de Mia Couto. É um livro profundo, que diz muito mais do que está contido em suas páginas. Sinto que nós, brasileiros, temos até mesmo a obrigação de tentar conhecer um pouco da história e da cultura da África, esse continente com o qual temos laços tão fortes. E as obras de Mia Couto são uma excelente opção. O português de Moçambique, tão igual e tão diferente do nosso, é delicioso! Sem contar todas a palavras que Mia couto, inventa, ou melhor, descobre, como ele mesmo diz. E vários de seus livros foram publicados no Brasil. Se você, como eu, estava só precisando de um empurrãozinho para ler Mia Couto, aqui está ele! :-)
Para finalizar, deixo aqui mais um trecho do livro que me deixou pensativa. Quanto mais eu leio, mais triste e intrigada eu fico com as guerras que continuam acontecendo mundo afora.
“Tinha que haver guerra, tinha que haver morte. E tudo era pra quê? Para autorizar o roubo. Porque hoje nenhuma riqueza podia nascer do trabalho. Só o saque dava acesso às propriedades. Era preciso haver morte para que as leis fossem esquecidas. Agora que a desordem era total, tudo estava autorizado. Os culpados seriam sempre os outros.”
Terra Sonâmbula foi publicado originalmente em 1992 e no Brasil em 2007 pela Companhia das Letras.
Mais alguns autores moçambicanos:
- Paulina Chiziane
- Ungulani Ba Ka Khosa
- Luís Bernardo Honwana
Saiba mais sobre o Projeto 198 Livros.
Não consegui arranjar o “Terra Sonâmbula”, mas li um outro do Mia Couto, “Cada homem é uma raça”. São várias histórias curtas, sem relação umas com as outras, mas muito interessantes. Nunca tinham lido nada do Mia Couto e adorei a forma como escreveu este livro, “escreve como fala” com muitos vocábulos crioulos.
Eu só li o Terra Sonâmbula, mas sinto que vou gostar de tudo que Mia Couto escrever!
Eu só li o Terra Sonâmbula, mas sinto que vou gostar de tudo que Mia Couto escrever!
Camila,
Mais uma vez agradecendo por esses achados do #198livros. Adorei ler o de Moçambique e com certeza lembrarei de ler mais livros do Mia Couto quando (se um dia) terminar os 198.
Beijo
Bom saber que a lista dos 10 melhores não está decepcionando! :-)
Camila, seus posts são de uma riqueza imensa! E você tem um dedo perfeito para escolher os livros! Essa semana já vou comprar um exemplar desse! :)
Obrigada, Lucimara! Nem sempre dá para saber exatamente o que encontrar só por uma curta resenha ou não há muitas opções disponíveis e às vezes dou azar, mas no geral as escolhas estão sendo boas mesmo. Terra Sonâmbula é ótimo!
Oi Camila! Faz um tempinho que não entro aqui, e só quero comentar que amei Terra Sonâmbula. É mesmo um livro fantástico! E me fez colocar mais livros do Mia Couto na wish list! Cada livro que eu leio, me rende mais uns cinco. Nas pesquisas, me encantei com o Eduardo Agualusa, e já peguei um dele! :)
Eu fiquei com vontade de ler vários livros dele, Lucimara! Difícil foi escolher um só. Você também já se apaixonou pela literatura de língua portuguesa? Eu estou deslumbrada!
Já! Desde que li o Luis Cardoso já fiquei bem interessada. Aí vi umas entrevistas do Agualusa, e foi o suficiente pra ficar querendo explorar mais! :)
Eu li esses dias As confissões da Leoa e fiquei com a mesma vontade de ler mais livros do autor quando terminei. Foi o primeiro romance do Mia Couto que li e fiquei apaixonada! Já tinha lido alguns contos dele em uma aula que fiz na faculdade, mas não me lembrava direito. Ótimo post, Terra Sonâmbula vai entrar na minha listinha (ou listona?) de leitura.
Natália, eu com certeza vou querer ler outros livros de Mia Couto! E nem me fale no tamanho das listas, porque a minha está ficando maior a cada dia com o #198livros! :-)
Tinha muita curiosidade em ler Mia Couto, Camila. Depois de ler suas impressões, a curiosidade aumentou mais ainda. Será uma das próximas leituras! Beijo grande.
Eu também Celinha, mas estava enrolando há um tempão! Se você ler Terra Sonâmbula, volte aqui para me contar o que achou, tá?
Volto sim, pode deixar! :)
As literaturas lusófonas são uma grande paixão entre os estudantes de literatura em geral… Eu mesma fico encantada com praticamente tudo o que me cai em mãos – e tenho vários alunos que, mesmo se formando em inglês, decidem seguir carreira na área…
Carla, exceto por alguns clássicos portugueses, meu conhecimento nessa área era praticamente nulo. É fácil entender porque muitos se apaixonam!