Dizem que durante um discurso aos comandantes do Exército Alemão dias antes de invadir a Polônia, Hitler teria dito o seguinte: “Afinal, quem fala hoje do extermínio dos armênios?” Verdade ou não, e apesar de o holocausto judeu não ter passado despercebido como ele esperava, a frase continua fazendo sentido. No dia 24 de abril de 2014 o início de um dos maiores genocídios do século passado completou 99 anos. E talvez você nunca tenha ouvido falar sobre ele. Isso porque o Genocídio Armênio é um tema praticamente ignorado pelos livros de História. E não só ignorado, mas também negado. A maioria dos países ainda hoje não reconhece o massacre de 1,5 milhão de armênios no que se acredita que tenha sido uma tentativa de exterminação do povo armênio pelos turcos.
A Turquia nega que o genocídio existiu, diz que os números são exagerados e que a morte dos armênios aconteceu em consequência da Primeira Guerra Mundial. Cerca de 20 países, como França, Chile, Uruguai e Suécia, além de diversas organizações internacionais, reconhecem o genocídio. O Brasil não. Nem os Estados Unidos. E os descendentes da diáspora armênia espalhados pelo mundo continuam lutando até hoje pelo reconhecimento do crime praticado contra seu povo.
Os ataques já haviam começado antes. No final do século XIX, milhares de armênios foram assassinados por ordem do sultão Abdul-Hamid II, acusando-os de colaboração com os russos. A situação da Armênia não era fácil, já que ela estava espremida entre dois gigantes: os Impérios Otomano e Russo. Mas foi em 24 de abril de 1915, durante o governo do partido dos Jovens Turcos, que o maior massacre começou. Nessa data, cerca de 600 líderes armênios foram presos em Istambul e em seguida assassinados. A partir daí a perseguição ficou mais evidente. Vilarejos foram dizimados, pessoas foram torturadas, outras vendidas como escravas. Mas a maior taxa de mortalidade aconteceu durante as deportações. Os armênios foram obrigados a abandonar suas cidades, com a desculpa do avanço das tropas inimigas, e muitos morreram durante a marcha, seja de fome, sede ou pelas violências a que eram submetidos.
A cidade de Van, que até essa época tinha uma presença armênia predominante, desempenhou um papel importante nesse período no que ficou conhecido como a Resistência de Van. Entre abril e maio de 1915, os moradores de Van pegaram nas armas para se defenderem do exército otomano. Foi um dos poucos exemplos de luta armênia durante o genocídio. Os turcos recuaram quando o exército russo se aproximou, mas pouco depois os russos voltaram ao campo de batalha e Van ficou vulnerável. A revolta de Van foi usada como justificativa pelos turcos para a perseguição aos armênios, mas muitos historiadores dizem que na verdade ela foi uma reação ao que já estava acontecendo. Esse episódio polêmico é o tema central do livro Burning Orchards, do escritor Gurgen Mahari.
Encontrar um livro armênio contemporâneo é muito mais difícil do que eu imaginava. A tragédia ocorrida no início dos século passado fez com que muitos armênios fugissem da região. Os livros mais recentes são escritos por descendentes de sobreviventes, pessoas que cresceram em outros países e que ouviram a história da boca de seus pais e avós. É natural, tendo em vista o tempo que já passou. Mas eu queria a visão de alguém que testemunhou os fatos, que viveu aquele período, então tive que voltar um pouco no tempo.
Burning Orchards foi publicado em 1966. O autor, Gurgen Mahari, nasceu em Van em 1903 e saiu de lá quando a cidade foi evacuada, após a saída do exército russo. O livro foi publicado na Armênia, mas foi banido e até queimado na frente da casa do escritor. Mahari foi acusado de contar uma versão dos fatos que favorecia os turcos e compelido a retirar algumas passagens do livro que os acusadores julgaram ofensivas. Mas a última tradução trouxe o livro completo, em sua versão original. Com tantas controvérsias envolvendo Burning Orchards, minha curiosidade só aumentou!
Burning Orchards começa alguns anos antes de Van se rebelar contra os turcos. Aos poucos a gente vai se familiarizando com a abundância de personagens e de fatos históricos que desconhecemos e as coisas vão ficando mais claras. O mais interessante do livro é que ele não cria santos e vilões. Os personagens principais são cheios de defeitos e qualidades, como todos nós. O núcleo principal da história é a família de Ohannes, um rico mercador que parece tentar viver em uma ponte entre o Oriente e o Ocidente. De acordo com o narrador, ele é o herói da saga, ao lado de seus amigos Panos e Simon, mas o que vemos é um homem moralista, que se acha sempre certo, mas que é egoísta e extremamente machista.
Apesar de abordar um tema bem pesado, Burning Orchards tem muitos toques de humor dados pelos personagens e pelo tom meio sarcástico do próprio narrador. Em muitos aspectos, o livro se assemelha aos grandes clássicos russos e não só pelo tamanho (nada mais, nada menos que 528 páginas), mas também pela força da história e o estilo da narração, repleta de retratos da cultura armênia. Mkho, irmão de Ohannes, inclusive me lembrou bastante o personagem Levin, de Anna Karenina.
O livro me envolveu tanto que depois eu quis saber mais detalhes sobre o cerco de Van. Descobri que muitos personagens, como Aram, Vramian e Ishkan, eram reais. Fiquei triste ao ver suas fotos e conhecer melhor suas histórias sabendo do fim que tiveram, mesmo que na maior parte do romance eles tenham se comportado como vilões.
Burning Orchards chega ao seu ponto mais trágico quando Van é evacuada e Ohannes é obrigado a abandonar sua cidade junto com os demais armênios. Nessa hora todos são iguais, ricos ou pobres, fortes ou fracos. E fica claro que a grande protagonista dessa história é Van, a antiga cidade de frente para o lago que continua de pé mesmo quando seus habitantes a abandonam.
“Indeed, the lake – the ‘little sea’ – is still calling out, but nobody now understands its language.”
Se você quiser ler mais sobre o Genocídio Armênio, deixo aqui alguns links que me ajudaram a entender melhor o que ocorreu e continua ocorrendo:
- Genocídio Armênio: as consequências de 99 anos de negação e esquecimento, no operamundi
- A história de uma sobrevivente do Genocídio Armênio, no jornal britânico The Independent
- O Cerco de Van, no Wikipedia
Burning Orchards foi publicado originalmente em armênio, em 1966, e em inglês em sua versão completa em 2007, pela Black Apollo. A tradução é de Haig Tahta, Dickran Tahta e Hasmik Ghazarian.
Mais livros de autores armênios:
- Armenian Golgotha, Grigoris Balakian
- The Land of Nairi, Yeghishe Charents
Saiba mais sobre o Projeto 198 Livros.
Oi Camila, descobri seu blog recentemente e estou adorando. Eu conheci o projeto da Ann Morgan em 2016 e estou lendo os livros do mundo inteiro. Um projeto fascinante. Da Armênia li The Fool do Raffi, maravilhoso. Livro publicado em 1880. O genocídio já tinha começado. Muito triste. Fiquei com vontade de ler o livro que você sugeriu. Muito obrigada pelas dicas excelentes.
Oi. Renata! Acabei de comprar mais um livro armênio, mas ainda não li: “Three Apples Fell from the Sky”, da escritora Narine Abgaryan. Tô curiosa por ser contemporâneo!
Ai que vontade que dá Camila! Chego já por lá! Eu sabia do genocídio só desconhecia os detalhes!
Meninas, eu não sabia desse genocídio! Vou ver todos esses links!
Meninas, pra mim “Genocídio Armênio” era um tema bem vago até eu ler o livro. Só então pesquisei mais e vi o que realmente aconteceu.
Como sempre, post excelente, não sabia do genocídio. Sou fã de livros em Kindle, vou correndo comprar. Parabéns. Bj.
Virginia, uma história tão triste e tão desconhecida, né? Depois me conta o que achou do livro!