Dessa vez eu nem me dei ao trabalho de pesquisar um livro, pois de todos os lados vinha uma mesma recomendação. A Albânia seria mais um país difícil se não fosse por Ismail Kadaré, o autor albanês que ficou famoso no mundo todo especialmente por causa de seu livro mais famoso: Abril Despedaçado. Provavelmente você já ouviu falar nesse livro por causa do filme homônimo nele inspirado, estrelado por Rodrigo Santoro. Eu não assisti ao filme, o que de certo modo foi bom porque eu comecei a leitura sem nenhuma expectativa, sem saber nada sobre o enredo. Eu só esperava que o livro fosse bom e nisso eu acertei!
Confesso que a história do livro me pegou de surpresa. Foi através de Abril Despedaçado que conheci o kanun, um conjunto de leis tradicionais transmitidas oralmente nas montanhas no norte da Albânia durante séculos. O kanun dita regras sobre diversos aspectos da vida cotidiana, mas a mais marcante e absurda delas talvez seja a que rege as consequências de um assassinato. Funciona mais ou menos assim: se um membro de uma família é assassinado, ela tem não apenas o direito, mas o dever de vingar essa morte matando um homem da família do assassino. E essa nova morte gera um novo direito de vingança e assim sucessivamente. É a chamada vendeta, a retomada do sangue. A vendeta só termina com o perdão ou quando todos os homens estão mortos, pois dela as mulheres não participam.
Abril Despedaçado retrata o kanun através da história de Gjorg Berisha, um rapaz que se vê obrigado a limpar a honra do irmão morto na continuação de uma vendeta que havia começado setenta anos antes entre sua família e a família de Zef Kryeqyq. A história se passa no início do século passado. As primeiras páginas do livro já nos mostram o peso dessa tradição. Gjorg está na estrada à espera do homem que deve matar e “queria que o crepúsculo caísse o quanto antes, trazendo a noite, e o deixasse escapar daquela maldita tocaia”. É angustiante acompanhar os passos que o transformam em um assassino sabendo que ele o faz contra sua própria vontade e que naquele momento ele está também assinando sua sentença de morte. Após a bessa grande, a trégua de 30 dias concedida pela família ofendida, sua vida estará sempre por um fio. A tarja negra amarrada em seu braço não esconderá sua situação de ninguém. Para fugir da morte, ele teria que passar o resto da vida enclausurado. É triste, é absurdo, é inexorável.
A vida de Gjorg se entrelaça, de forma tênue e determinante, à de Bessian e Diana, um casal de Tirana – a capital da Albânia – que viaja em lua de mel pelo norte do país. Bessian é fascinado pelo kanun e quer ver de perto aquela região épica que para ele sintetiza tudo de mais belo e terrível no mundo, o “reino da morte”, como ele a descreve. Para Bessian o kanun, por mais selvagem e impiedoso que seja, é “uma das mais monumentais constituições já elaboradas na face da terra”. E talvez ele esteja certo, pois nada conseguiu acabar com ele. Nenhum governo conseguiu extinguir de vez o kanun ao longo dos últimos quinhentos anos, nem os turcos, nem os sérvios, nem os próprios albaneses.
Ainda hoje há famílias que vivem presas dentro de casa por medo das vendetas que não querem deixar de existir. Há esforços do governo e de organizações internacionais para erradicar de vez essa terrível prática. Felizmente, as vendetas são cada vez mais raras. Poucas são também as Virgens Juramentadas da Albânia, mulheres que, para fugir da posição degradante a que o kanun as relegou, adotam o papel de homem perante a sociedade. As vendetas e as Virgens Juramentadas hoje são resquícios de uma sociedade que viveu isolada durante muito tempo, mas que está se modernizando. A Albânia é um dos países mais pobres da Europa, mas no mundo de hoje as coisas mudam rápido. Em breve provavelmente tudo isso não passará de história.
Abril Despedaçado foi publicado originalmente em albanês, em 1982, e no Brasil em 1991, pela Companhia das Letras. A tradução é de Bernardo Joffily.
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Eu também, fiquei chocada e surpresa com o tema, mas ele escreve bem demais! Vale a pena, ver o filme também!
Ana, tô aqui enrolando e até hoje não vi o filme! Tenho que “resolver” isso logo! rsrs
Difícil acreditar nessas brigas de família. Fiquei espantada com esse kanun. Terminei de ler e já assisti o filme, que é bem mais triste que o livro! E tem outro que quero ver. O nome é “Perdão de Sangue”.
É impressionante pensar que não é totalmente ficção, que o kanun foi uma realidade durante muito tempo e que ainda há resquícios dele, né? Eu também me espantei. Ainda preciso ver o filme e agora quero ver “Perdão de Sangue” também! Vamos ver se dá tempo de eu assistir antes de viajar!
É, vi uma reportagem de um menino que não sai de casa, por conta de uma morte provocada pelo pai dele!
Ai Camila, meu coração ficou apertado com o filme. Depois me conta o que achou! Esse outro eu não encontrei na internet. Vou ver onde consigo…
Pois é, eu vi algumas reportagens recentes sobre o assunto e uma delas falava que existiam ainda cerca de 30 famílias em vendeta na Albânia.
Lu,
Camila,
Também estou com saudades de trocar ideias sobre os livros lidos e sobre
os próximos da fila. Depois que eu tiver lido alguns livros, volto a deixar
meus comentários aqui. Tô me esforçando!
Vi que esta semana estreia no circuito comercial o filme palestino “Omar”, que foi indicado a Oscar na categoria de filme estrangeiro este ano, e me lembrei de indicar pra vocês. Ainda não vi, mas recebi ótimas recomendações de amigos. Se estiver passando aí, vejam!
Aproveito pra indicar alguns filmes que vi e que podem fazer bom par com
os livros de outros países (quase tudo é da lista do Oscar de língua estrangeira, mas só assim pra ter acesso a eles…):
– No (Chile): conta a história de um grupo de publicitários que criaram a campanha que derrubou, por meio de um plebiscito, a ditadura no país. Em tempos de eleição, é inspirador!
– Separação (Irã): nunca esperei que um processo de separação de um
casal no Irã fosse tão parecido com o que acontece no ocidente. Já vi esse
filme algumas vezes e sempre me encanto com a sensibilidade do diretor e do
elenco.
– Dança Comigo (japonês): foi feita uma versão americana, com Richard
Gere e Jeniffer Lopez, mas o original japonês é lindo. Um homem muito tímido e introspectivo passa todos os dias perto de uma escola de dança e fica admirando as aulas, até que resolve entrar. Outro filme que mostra um pouco do Japão contemporâneo é o Encontros e Desencontros (americano).
– Amores Perros (México): faz parte da trilogia de González Iñarritu
(junto com 21 Gramas e Babel), e eu nunca consigo me lembrar quais personagens e histórias fazem parte de cada um desses filmes. São várias histórias entrelaçadas, todas bem dramáticas.
– A Onda (Alemanha): numa escola, o professor mais popular cria uma
atividade de grupo que mostra como é fácil chegar ao totalitarismo, mesmo hoje. Um filme corajoso, por abordar um tema que é bem sensível na Alemanha.
– Entre os Muros da Escola (França): mostra os conflitos da
sociedade multicultural da França hoje, retratando o dia a dia de
uma escola na periferia de Paris, com alunos imigrantes de vários países. Às vezes, tem um jeito de documentário.
– Kolia (República Tcheca): parece banal, pois é um desses filmes que o Oscar adora: um menino abandonado pela mãe acaba sendo “adotado” por um pai improvável. Assisti há séculos, mas gostei, na época.
– Adeus, Lênin (Alemanha): dois anos depois da queda do muro de Berlim,
os filhos precisam fingir para a mãe que o muro não caiu, para evitar que ela
morra com o susto depois de acordar de um coma prolongado. Curioso e divertido.
Tem outros filmes que não são produções autênticas (dos países retratados), mas que mostram tão bem os lugares que valem a menção:
– O Último Rei da Escócia (inglês): mostra o governo do ditador Idi Amin em Uganda;
– Diamantes de Sangue (americano): guerra civil de Serra Leoa;
– Maria Cheia de Graça (americano): o filme passa mais nos Estados Unidos do que na Colômbia, mas o tema é bem colombiano: uma mulher que decide servir de “mula” para traficantes de cocaína.
Espero que vocês gostem!
Wanessa, suas recomendações de filmes são sempre inspiradoras!!! Apareça com mais frequência, sim, nem que seja para trocarmos ideias sobre os filmes, e para dar pitaco nas escolhas dos próximos livros. Olha, eu também não consigo acompanhar o ritmo de leitura das meninas, porque sempre tenho um milhão de leituras paralelas ao projeto para fazer, mas aos pouquinhos vamos percorrendo o caminho no nosso ritmo! O importante é manter o prazer de participar! ;-)
Wanessa,
Muito obrigada pelas indicações dos filmes! Adorei! Já vi alguns desses e outros, como “No” estão na minha lista faz tempo! O “Dança comigo” é ótimo!
Tenho priorizado os livros e tem sobrado pouco tempo para ver filmes, mas, aos poucos, vou tentar seguir as suas recomendações.
Wanessa, aparece lá no grupo nem que seja pra bater papo. Sobre livros e filmes! :-)
Oi, Camila!
Quanto tempo… Ando calada, mas sigo lendo os posts dos livros e de Portugal.
Enfim, desse livro, posso comentar. Ele é angustiante, mas o autor se saiu muito bem ao despertar nosso interesse por um tema tão árido. Tive vontade de ler mais obras dele.
Já tinha visto o filme quando li o livro e foi um choque quando comecei a leitura e, ao invés do sertão, o cenário era um campo cheio de neve! Jurava que Ismail Kadaré era nome de autor nordestino…
Wanessa, você anda fazendo falta! ;-)
Oi, Carla! Depois de ensaiar tantas vezes retomar as leituras do projeto e abandonar outra vez, resolvi ficar aqui quietinha até já ter realmente lido algumas coisas.
Das escolhas dos livros, estou por fora porque não tenho acessado o facebook mesmo. Mas confio totalmente nas decisões de vcs!
:-)
Wanessa, saudades! Vê se não some por tanto tempo!
Wanessa, você foi uma das pessoas que desde o início recomendou esse livro. Por isso eu não pensei duas vezes antes de comprá-lo!
Vou fazer coro com as meninas e dizer que estamos sentindo sua falta! Volta!!! :-)
Não li o livro, mas vi o filme. A história é basicamente a mesma, só que passa no interior do nordeste brasileiro no início do século 20. O Rodrigo Santoro é o rapaz que tem que vingar a morte do irmão. O filme é bom, a fotografia é bonita, só achei leeeeento. :) Não sabia que era baseado num livro albanês.
Agora eu estou com vontade de ver o filme. Lembro que na época ele fez bastante sucesso, não sei porque não vi.
Camila, ótima resenha! (estou cansada de resenhas que “entregam” o enredo do livro!)
Li a tradução em português e gostei; o livro fluiu fácil apesar do tema pesado. Também não vi o filme!
Também achei que fluiu bem, Lu. É triste, mas é muito bonito, além de ser pequeninho, né?
Ó, acho que devia ter punição para quem entrega mais do que deve em resenhas e introduções! Muitas vezes isso estraga grande parte do prazer da leitura.
Ah, concordo totalmente! Acho que as pessoas não sabem o que é uma resenha – devem confundir com resumo, não sei, e por isso vão logo entregando toda a história…
No caso da introdução, pode ser um artigo de crítica, e aí não tem mesmo essa restrição. Se for uma introdução maiorzinha, pode apostar que vai ter spoiler! Nesse caso, o truque é nunca ler a introdução antes de ler a obra. (Eu me arrependo todas as vezes em que quebro essa regra, como no The Past Ahead…)
Também fiquei esperta depois de The Past Ahead (que raiva!). Agora vou direto para a história e depois volto. Mas é chato, né? Deveria pelo menos haver uma aviso de spoiler…