Há dois tipos de leitores: os que veem os livros como objetos sagrados que não podem ser maculados e os que brincam com eles e os transformam em peças únicas, imprimindo suas marcas neles. Eu faço parte do primeiro time e por isso nunca tive o costume de fazer marcações ou anotações nos meus livros. Com o kindle tudo mudou. A facilidade de marcar os trechos que me interessavam foi um dos fatores que me fizeram apaixonar rapidamente pelos livros digitais. Quando comecei o #198livros, essas marcações se tornaram indispensáveis para eu lembrar as passagens mais importantes e poder escrever os posts depois. Mas quando é livro em papel eu continuo fazendo as anotações em um caderninho à parte, é claro! ;-)
Geralmente eu marco as passagens dos livros que trazem informações históricas ou culturais do país que estou lendo, já que minha intenção com essa jornada literária é justamente aprender mais sobre o mundo. Muitas marcações em um livro é sinal de que ele se encaixa bem no propósito do projeto. Pensando assim, o livro escolhido para Singapura foi perfeito, pois só os trechos que eu marquei já dariam outro exemplar! The Scent of the Gods, da escritora Fiona Cheong, foi ainda mais longe, pois foi não somente informativo, mas também um ótimo romance.
The Scent of the Gods é narrado por Esha, uma garota de família chinesa que nasceu em Singapura. A história se passa na década de 60, período em que Singapura ficou independente do Reino Unido, se juntou à Federação da Malásia e logo dela se separou. Foi nessa década que o primeiro-ministro Lee Kuan Yew começou a implantar as transformações que levaram o país a ser a potência econômica que é hoje e isso parece ser parte dos motivos que levaram Singapura a se separar da Malásia. Como se vê, foram anos movimentados. Tudo isso teve reflexos na família de Esha e o livro de certa forma faz um paralelo entre seu amadurecimento e o crescimento da recém-criada Singapura.
Esha e seus primos, os irmãos Li Shin e Li Yuen, formam uma ilha infantil cercada de adultos. Os pais dos três morreram em um acidente de carro quando eles ainda eram bem pequenos. Li Shin é o mais velho e o que tem mais lembranças dos pais e tios, mas ainda assim elas não são muitas. Os pais trabalhavam para o governo e viviam viajando, estando sempre ausentes. Quando eles ficaram órfãos, foram criados de vez pela avó numa casa enorme em que também viviam seus tios. Há uma clara distinção entre os mundos dos adultos e das crianças, que são afastadas dos assuntos importantes. Essa distinção é ainda maior para Esha que, por ser mulher, sofre mais restrições que seus primos homens.
Há um claro conflito de gerações ligado diretamente à situação política de Singapura. A família de Esha saiu da China por causa da guerra e da pobreza que assolavam o país no século XIX. Naquela época, por causa dos seus olhos, os chineses eram sempre vistos como coolies (trabalhadores braçais), não importava sua qualificação. A avó sente o peso da história da família, que conseguiu melhorar sua situação ao longo dos anos, e, apesar de viverem em Singapura há algumas gerações, continua se sentindo puramente chinesa. Li Shin representa o oposto: ele não nasceu na China, mas em Singapura, portanto, é singapurense. Quando adolescente, ele é totalmente envolvido pelo espírito nacionalista que existe no país.
É claro também o conflito étnico entre chineses e malaios. A visão que temos é apenas a da família de Esha. A avó diz que os chineses aproveitaram o que houve de melhor no período colonial e se instruíram. Nas escolas ensinava-se não só a língua do país de origem, mas também inglês. Enquanto isso, os malaios continuaram vivendo a vida de seus antepassados e estudando religião, mas não inglês ou ciências. Para ela os chineses eram obedientes e trabalhadores e os malaios preguiçosos. Li Shin vê tudo de maneira diferente e acha que o acontece na política é injusto. Ele diz que os britânicos roubaram a ilha dos malaios e agora que eles eram independentes os chineses é que estavam no poder. Os indianos, que também representam um parcela significativa da população de Singapura hoje, não são mencionados.
Nossa visão da história é sempre parcial, assim como a de Esha. Ela não toma parte nos acontecimentos, apenas os presencia. Os segredos da família são vedados a ela e também a nós. Não sabemos se a morte de seus pais foi realmente um acidente, nem o que aconteceu em alguns episódios marcantes que não posso citar aqui para não estragar a leitura de ninguém. Parece que a autora usou Esha para exemplificar a situação da população de Singapura. Ela não sabia de tudo o que acontecia e tinha seus direitos restritos, mas era tudo em prol do seu bem estar e da sua segurança. Mas isso é feito sem julgamento, sem dizer quem está certo ou errado.
Eu não sou tão inteligente ou entendida sobre a história de Singapura para ter chegado a todas essas conclusões. É que no final do livro há um estudo sobre ele muito interessante e que me ajudou a entender muita coisa e a ver muitos detalhes que eu não havia percebido. Vale a pena ler também!
The Scent of the Gods foi uma leitura tão rica que eu poderia ficar um bom tempo ainda falando sobre ela. É também uma história triste, marcada por tragédias que a gente prevê desde o início, mas a narradora conta tudo com um distanciamento que deixa as dores mais toleráveis para o leitor. Vou ficar esperando os comentários de quem já leu para trocarmos umas figurinhas. E espero ter convencido mais alguns curiosos sobre Singapura ou os apreciadores de uma boa história a embarcar nessa também. :-)
The Scent of the Gods foi publicado originalmente em inglês, em 1991, pela W W Norton & Co Inc.
Mais alguns livros de autores de Singapura:
- Shadow Theatre, Fiona Cheong
- Fistful of Colours, Suchen Christine Lim
- The Lies That Build A Marriage, Suchen Christine Lim
- Crazy Rich trilogy, Kevin Kwan
- From Third World to First: The Singapore Story – 1965-2000, Lee Kuan Yew
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