198 Livros: Cabo Verde – O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo

Mais um país de língua portuguesa! Fico super feliz quando sorteio um deles, mas ao mesmo tempo fico pensando que não restam muitos. Já passaram por aqui Moçambique, Angola,  Timor Leste e São Tomé e Príncipe e alguns estão dentre os meus livros preferidos até agora, então a expectativa é sempre grande. Ainda faltam Portugal e Guiné-Bissau e eu tenho certeza de que virão coisas boas daí! Isso sem falar no Brasil, né? Além de ter descoberto uma rica literatura lusófona pouco difundida mundo afora, é uma delícia poder ler o original de livros de países tão distantes em nossa própria língua. Mas agora é a vez de falar de Cabo Verde, esse arquipélago africano sobre o qual eu confesso que não sabia quase nada.

Encontrar um livro de Cabo Verde foi tarefa até fácil. Havia vários livros de seu escritor contemporâneo mais famoso, Germano Almeida, disponíveis na Amazon para kindle. Como a tradução não era uma preocupação nesse caso, estava resolvido! Dentre os livros disponíveis, procuramos um que se encaixasse melhor no projeto e O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo foi o escolhido.

O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo é um livro bem engraçado. A gente conhece o personagem principal, o Sr. Napumoceno, após a sua morte e de uma forma inusitada: através de seu testamento, que tem nada mais nada menos que 387 páginas. Nessas inúmeras linhas ele faz muito mais do que repartir seus bens. O que ele quer mesmo é contar sua história. O Sr. Napumoceno foi um homem peculiar. Comerciante ilustre de Mindelo, na ilha da São Vicente, ele enriqueceu às custas de uma obra do destino. Cansado de andar a pé sob o sol escaldante de Mindelo, ele procurou um guarda-sol para comprar, mas não encontrou o produto em nenhuma loja. Vendo aí uma oportunidade de negócio, ele encomendou 1000 guarda-sóis. Quando o navio chegou, que confusão! Em vez dos 1.000 encomendados, chegaram 10.000! “Dez mil guarda-chuvas, numa terra em que são utilizados como guarda-sol porque infelizmente não chove!” Mas foi só o navio partir para o improvável acontecer: começou a chover na ilha de São Vicente!

“Primeiro foi uma chuva miudinha embora persistente, uma morrinha de chuva como se lhe chamou e que levou o locutor da Rádio Clube Mindelo a noticiar que em S. Vicente chuviscava torrencialmente. […] E por uns oito dias a chuva caiu daquela forma bonita e útil, encharcando o chão, a casa e as ruas.”

Em seu livro de memórias  o Sr. Napumoceno conta sua história desde pequeno, quando desembarcou descalço em São Vicente vindo de São Nicolau. Ele tenta reforçar a cada parágrafo a sua fama de bom cidadão, mas a narração é recheada de ironias que a tornam cômica, pois ele mesmo contradiz a sua suposta integridade a todo momento.

“Porém, só a um louco poderia ocorrer que ele alguma vez poderia sentir-se envergonhado de tal acusação pois que jamais lhe passara pela cabeça que fazer contrabando pudesse ser um delito. Pelo contrário, entendia que a cobrança de direitos aduaneiros mais não era que uma extorsão disfarçada, isto é, o Estado a meter a mão no bolso de cada um e sem oferecer nenhuma contrapartida positiva. Assim, ele pessoalmente preferia dividir essa fracção fiscal om outros e em proporções menos exigentes que a estadual.”

Através dos herdeiros a gente vai descobrindo alguns detalhes da vida do Sr. Napumoceno que ele omite. A filha Maria da Graça, que só descobriu que era filha dele quando o testamento veio à tona, tenta conhecer melhor o pai após a sua morte e sai em busca de informações sobre seu passado. O sobrinho Carlos – que o ajudava nos negócios, mas de quem o Sr. Napumoceno mal se lembrou na hora de destinar seus bens – é outra fonte de dados importante, mas a gente nunca sabe quais dos dois conta a verdadeira versão dos fatos. Algumas buscas parecem levar a becos sem saída e muitas perguntas acabam ficando sem resposta.

No fim das contas O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo é uma sátira que expõe a hipocrisia de uma sociedade cheia de falsos moralismos. E nessas horas a gente percebe que as semelhanças entre Brasil e Cabo Verde podem ir muito além da língua em comum…

O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo foi publicado originalmente em Portugal, em 1991, pela Editorial Caminho.

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