O Oriente Médio nos parece distante, geográfica e culturalmente, mas muitas vezes ele está mais próximo do que a gente imagina. Costumamos associar a região a homens barbudos e mulheres cobertas da cabeça aos pés, mas ela é muito mais do que isso. Para começar, nem todo o Oriente Médio é árabe e nem todo país árabe está no Oriente Médio. Para representar os árabes usamos exemplos extremos como a Arábia Saudita, mas os países não são todos iguais. O Líbano, por exemplo, é conhecido por sua diversidade cultural e religiosa. Cerca de 40% da população do país é cristã e talvez por isso a gente não perceba nitidamente a presença de tantos descendentes de libaneses no Brasil. Sim, eles estão entre nós, apesar de termos a mania de chamar qualquer um que vem daquela parte do mundo de turco. Há ainda os sírios, formando a grande comunidade sírio-libanesa no Brasil. A maior prova desse intercâmbio cultural é a culinária. Quibe, esfirra, charuto de repolho, tabule… Pratos típicos da culinária árabe fazem parte do nosso dia a dia. Então porque será que na literatura o intercâmbio entre os países não é tão forte? Acho que se conhecêssemos melhor a cultura daquela região, provavelmente diminuiríamos nossos preconceitos.
Ao procurar um livros do Líbano para o #198livros, me surpreendi com a riqueza da literatura libanesa. Tantos livros pareciam bons! O único escritor que encontrei em português foi Elias Khoury, mas quando chega a vez de ler um país árabe fico tentada a ler alguma escritora. Acabei escolhendo um livro recente que deu o que falar em sua versão original, em árabe, e que foi traduzido para o inglês: Always Coca-Cola, da jovem escritora Alexandra Chreiteh.
Always Coca-Cola talvez nem possa ser chamado de romance. É um livro bem curto, com apenas 122 páginas, que não tem um enredo muito desenvolvido. Vi muita gente criticando a falta de conteúdo no livro, dizendo que ele não diz nada, mas eu não concordo. Não sei enquadrar os livros em estilos literários, mas para mim Alexandra Chreiteh fez uma espécie de recorte da situação das jovens no Líbano hoje.
O livro é recheado de humor e ironia. Alexandra Chreiteh explora vários assuntos femininos considerados tabus. Quantos livros a gente vê por aí falando sobre menstruação e sobre a escolha de um absorvente? O trocadilho começa já no nome do livro: um jingle da Coca, mas também uma junção do nome de um refrigerante com a marca de um absorvente.
Always Coca-Cola acompanha o dia a dia de três amigas que estudam na mesma universidade. Yana é uma romena que foi parar no Líbano por causa de seu ex-marido – um libanês que ela conheceu na Romênia – e lá continuou após a separação. Yasmine, filha de uma alemã, cresceu numa cidade do interior do Líbano e agora vive sozinha em um apartamento em Beirute e luta boxe. Abeer é a narradora. Ela mora com os pais e é, digamos, a menos moderna das três. Seu conservadorismo fica claro em uma das cenas iniciais do livro, quando Yana suspeita estar grávida de seu novo namorado.
“Yana has never asked me for my opinion about her relationship. But if she ever does, I’ll tell her that she needs to break up with him straight away and go back to her husband for sure; marriage is not underwear that you take on and off and change every day! I actually hoped that Yana would be pregnant – but by her husband – because this would perhaps be her last chance to save her marriage.”
As falas de Abeer pra mim são verdadeiras sátiras, cômicas se não fossem trágicas. Ela passa aperto num dia em que sua menstruação desce durante um passeio com as amigas numa lanchonete e é essa cena que dá nome ao livro. Yana e Yasmine até têm absorvente na bolsa, mas ela não pode pedir porque elas usam absorvente interno. Abeer nunca usaria algo assim, um absorvente que todos sabem que tiraria sua virgindade!
Ao mesmo tempo em que Abeer é super conservadora e machista, ela fala dos costumes muçulmanos e da sua própria condição com muita lucidez e sarcasmo.
“Despite all this, it was a simples matter for Yana: her foreign citizenship empowers her. Yana can get pregnant and give birth without thinking of getting married – not for a second or even a fraction of a second – and without thinking of honor. As for me, honor has to be the of the utmost importance: I am an authentic Lebanese woman in every sense.”
Não sei se consegui captar todas as nuances de Always Coca-Cola. Provavelmente não (até porque dizem que muito se perdeu na tradução), mas o que percebi já me deixou satisfeita. Por trás de cenas simples do cotidiano, Alexandra Chreiteh abordou temas bens atuais, como machismo, tradições e globalização. Pode não ser um super romance, mas pra mim foi uma excelente leitura!
Always Coca-Cola foi publicado originalmente em árabe, em 2009, e em inglês em 2012, pela Editora Interlink Books. A tradução é de Michelle Hartman.
Mais alguns escritores libaneses contemporâneos:
- Elias Khoury
- Hanan al-Shaykh
- Iman Humaydan Younes
- Hassan Daoud
- Jabbour Douaihy
- Najwa Barakat
- Hoda Barakat
- Lamia Ziade
- Rasha Al Ameer
Saiba mais sobre o Projeto 198 Livros.
Bacana Camila! Ainda não sei qual ler. Também gostei do Yalo, o filho da Guerra, do Elias.
Com certeza ainda lerei algum livro dele!