198 Livros: Togo – Escravos

É até embaraçoso dizer isso, mas precisei dar meia volta ao mundo em livros para finalmente me interessar em pesquisar sobre uma das partes mais importantes e tristes da história brasileira: a escravidão. O engraçado é que esse interesse não surgiu lendo um livro brasileiro, mas de um país que tem uma grande relação com o Brasil: o Togo. Desde que ouvi falar pela primeira vez sobre o livro Escravos, do escritor togolês Kangni Alem, eu soube que esse seria meu escolhido quando chegasse a vez do país. Comprei o livro há muito tempo e o deixei esperando aqui na estante e agora que o li posso dizer que eu não poderia ter escolhido um livro melhor.

Escravos nos conta a história de um mestre de rituais do rei Adandozan, do Reino de Daomé – atual Benim, país vizinho ao Togo. Durante a maior parte do livro achei que eu estava conhecendo apenas as histórias de Benim e do Brasil, mas ao chegar ao final eu descobri como as histórias se entrelaçam com a do Togo. O tal mestre de rituais é vendido como escravo ao Brasil após Adandozan ser deposto, em 1818. Os responsáveis por seus destinos são Ghezo, o novo rei de Daomé, e Francisco Félix de Sousa, o Chachá, homem considerado o maior traficantes de escravos brasileiro.

Ao chegar ao Brasil, o mestre de rituais é batizado como Miguel. Quando retorna à África, quase 20 anos depois, seu nome é Sule. Através da história de Miguel o autor retrata a situação dos escravos, da viagem pelo Atlântico à realidade do trabalho nas fazendas. E foi nessa fase da história que eu me surpreendi ao descobrir fatos que não imaginava. O que é que a gente sabe a respeito dos africanos muçulmanos que vieram para o Brasil? Já pararam para pensar que, além da escravidão em si, esses escravos foram submetidos à dominação religiosa que impunha a fé católica?

Precisei ler um livro de um escritor togolês para ouvir falar pela primeira vez da Revolta dos Malês, uma rebelião de escravos de origem islâmica que aconteceu em Salvador em 1835. Os negros foram derrotados, mas a revolta deixou muitas marcas e talvez a principal delas tenha sido a deportação de mais de 500 africanos de volta à África para evitar que eles desestabilizassem ainda mais o sistema escravagista. E foi assim que surgiram os primeiros núcleos de afro-brasileiros na antiga Costa dos Escravos.

Mais do que contar a história de Miguel e retratar o fluxo migratório entre Brasil e África no século XIX, Escravos me deu uma verdadeira aula sobre o tráfico negreiro. A Dinamarca, que pouco tempo antes tinha lucrado muito com o comércio de escravos no Togo, foi o primeiro país a abolir a prática, seguida pelo Reino Unido. Não nos enganemos achando que as leis foram alteradas em prol dos direitos humanos! O que importava eram os ganhos econômicos e esses países foram os primeiros a perceber que explorar mão de obra escrava não era a forma mais vantajosa de fazer dinheiro. E talvez a maior ousadia de Kangni Alem seja imputar aos africanos parte da culpa nessa história.

“Na própria África […] nenhum reino proclamara abertamente a interdição ao tráfico negreiro nem tentara fazê-la respeitar. Alguns afirmam que se o tráfico negreiro sangrou a África, também enriqueceu seus reis. No entanto, os mais chocados com esta afirmação rebaterão dizendo que equivale a um cinismo de mentiroso colocar o enriquecimento dos reis cúmplices no mesmo nível do enriquecimento das nações europeias e americanas, radicalmente transformadas pela pilhagem da mão de obra negra!”

“Nem os próprios negros de hoje se entendem a respeito do assunto, preferindo brigar da África às Antilhas. O que se pode pensar dessas divergências? Quanto aos europeus, sempre fiéis às suas baixezas, continuam mantendo o mito ultrajante de que compravam apenas porque havia quem vendesse. Raciocínio torpe.

A escravidão é um ultraje, um desafio lançado à humanidade, portanto é inútil tentar se desculpar! E se há justiça a ser feita, deve ser prestada às vítimas, e não aos seus carrascos.”

Escravos é polêmico também ao reescrever a história dos reis Adandozan e Ghezo, transformando o mocinho em vilão e vice-versa. Ele contesta abertamente a versão oficial dos fatos, a que coloca Adandozan como um rei maluco, cruel e incompetente. Um conto do livro que li de Benim trata desse mesmo assunto, mas sob uma perspectiva muito diferente. Qual versão é verdadeira? Quem pode dizer com certeza? Se a gente não consegue julgar com clareza o que acontece na política hoje diante dos nossos narizes, imagine tentar desvendar fatos ocorridos há quase 200 anos!

O livro Escravos me marcou muito. Se eu pudesse transcreveria aqui dezenas de trechos que me fizeram pensar na nossa história, mas seriam muitos e esse post não teria fim. Bom mesmo é se eu tiver conseguido despertar sua curiosidade, porque vale a pena ler o livro todo. Depois de ler, volte aqui pra gente conversar!

Escravos foi publicado originalmente em 2009, em francês, e no Brasil em 2011, pela Editora Pallas. A tradução é de Laura Alves e Aurélio Barroso Rebello.

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