Prestes a chegar ao 100º país da minha volta ao mundo literária, eu já havia lido muitos livros sobre ditaduras, guerras, genocídios. Se dermos uma rápida estudada na história do mundo no século passado, é difícil encontrar um país sem pelo menos uma grande atrocidade no currículo. O livro do Chile poderia ser mais um relato das vítimas de uma ditadura, mas Alejandro Zambra escolheu uma forma diferente para abordar esse assunto.
O protagonista de Formas de Voltar para Casa nasceu em Santiago na década de 70, época do golpe de Pinochet, ao qual se seguiu um regime autoritário que durou 16 anos e deixou mais de 40 mil vítimas entre mortos, desaparecidos e torturados. Mas, apesar da proximidade com os fatos históricos, ele nos traz a visão de alguém que cresceu à margem dos conflitos políticos e só se deu conta do que seu país sofreu anos depois.
“Quanto a Pinochet, para mim era um personagem da televisão que conduzia um programa sem horário fixo, e eu o odiava por isso, pelos aborrecidos pronunciamentos em cadeia nacional que interrompiam a programação nas melhores partes. Tempos depois o odiei por ser filho da puta, por ser assassino, mas na época o odiava somente por aqueles intempestivos shows que meu pai olhava sem dizer palavra, sem conceder mais gestos que uma tragada mais intensa no cigarro que levava sempre grudado na boca.”
Ele agora relembra fatos de sua infância, detalhes que só fizeram sentido décadas depois. É uma mistura da visão juvenil com o saudosismo que nos acomete na vida adulta. Aparentemente seus pais ficaram neutros durante a ditadura, não se envolveram com política. E não é isso o que acontece com a maioria das pessoas? As histórias das vítimas e ativistas se destacam, mas, estatisticamente falando, essas pessoas são minoria no universo da população. Não é mais comum ver pessoas acomodadas, alienadas e passivas? Chega uma hora em que nosso protagonista questiona se essa passividade não poder ser encarada como uma forma de apoio ao regime. Foi isso o que mais me impressionou em Formas de voltar para casa.
A ditadura de Pinochet entra na história através de Claudia. Ele é ainda uma criança quando um terremoto leva todos para fora de casa. É nesse momento que Claudia aparece com seu tio Raul, um vizinho meio excêntrico com o qual sua família não tem muito contato. Naquela época ele não tinha condições de enxergar o que realmente acontecia com Raul. Só anos depois a história se descortina para ele com clareza.
Quando a gente acha que está seguindo o rumo dos acontecimentos, o livro dá uma guinada e vira um livro dentro de outro livro. Nesse momento Formas de voltar para casa ganha ares de autobiografia. Não sei quanto de Alejandro Zambra está ali ou se tudo não passa de ficção. Num post do O Espanador o Kalebe diz que em outras obras também acontece de o Zambra se tornar personagem do próprio livro, então talvez realmente haja um cunho autobiográfico.
Eu sou mais nova que Alejando Zambra. Só conheci a ditadura brasileira pelas aulas na escola. Meus pais talvez fossem como os pais de Formas de voltar para casa, por isso minha família não tem muitas histórias para contar dessa época. Nesse ponto me identifiquei com o personagem, mas ainda mais quando ele menciona o que acontece nos dias de hoje. Pelo jeito não só no Brasil somos obrigados a ver gente defendendo a volta da ditadura…
“Não fazia mal a este país um pouco de ordem, diz. E finalmente vem a frase temida e esperada, o limite que não posso, que não vou tolerar: Pinochet foi um ditador e tudo mais, matou algumas pessoas, mas pelo menos naquele tempo havia ordem.”
Formas de voltar para casa foi meu primeiro contato com a obra de Alejandro Zambra. Não fiquei tão apaixonada como muitas pessoas que vejo por aí, mas gostei muito do que li. Gostei da escrita leve, da construção da história e principalmente da forma que ele encontrou para abordar a ditadura chilena, sob uma perspectiva menos convencional. Por via das dúvidas, comprei todos os livros dele publicados pela Cosac Naify antes que eles se esgotem.
Só uma última curiosidade: no início do livro, um terremoto nos apresenta Claudia e décadas depois ele se encerra em mais um terremoto, dessa vez em 2010. Desse eu me lembro bem, pois aconteceu dois dias antes do que seria minha primeira viagem para o Chile, cancelada de última hora por causa dos estragos causados pelo terremoto. Felizmente tive a chance de ir ao Chile depois e essa foi uma das viagens mais legais que já fiz.
Formas de Voltar para Casa foi publicado originalmente em espanhol, em 2011, e no Brasil em 2014, pela Editora Cosac Naify. A tradução é de José Geraldo Couto.
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