Apesar de dizer o tempo todo que o Projeto 198 Livros está me ajudando a conhecer o mundo, tenho bem clara a noção de que um único livro não é capaz de me apresentar de verdade um país. Um livro é sempre a visão de um autor sobre a realidade e traz consigo sua vivência e sua forma de enxergar o mundo. Sei que ao escolher um livro de cada país eu escolho uma versão da história. Essa questão da representatividade de um livro fica ainda mais evidente quando chega a vez de países enormes em tamanho e cultura como Brasil, Índia, Rússia, Estados Unidos e, é claro, a China. Como ler apenas um livro da China, o 3º maior país do mundo em extensão territorial e o maior em população? Quantos países cabem dentro da China? Quantas etnias, histórias e culturas? O jeito foi aceitar que eu poderia ter apenas uma amostra da China, mas já que é assim, pelo menos que fosse uma amostra de peso. E foi assim que escolhi o calhamaço Cisnes Selvagens, da escritora Jung Chang.
Cisnes Selvagens é a biografia de três gerações de mulheres chinesas: a autora, Jung Chang, sua mãe e sua avó. Através da vida dessas mulheres a gente conhece uma parte da história da China ao longo do século XX. E que história! Muita coisa acontece na China e no mundo nos quase 100 anos narrados no livro.
Na época em que Yu-Fang – a avó de Chang – era jovem, a sociedade era extremamente conservadora e cruel com as mulheres. Yu-Fang tinha os chamados pés de lótus, pés que eram deformados desde a infância das meninas para que ficassem menores. Quanto menor o pé, melhor e mais submissa era a esposa (felizmente essa prática foi proibida em 1911). Aos 15 anos, o pai arranjou tudo para que ela se tornasse a concubina de um militar. Escolher o próprio marido ou amante nessa época estava fora de cogitação. Dessa união nasceu Bao Qin, a mãe de Chang.
Bao Qin, nasceu na década de 30, época em que a Manchúria era dominada pelo Japão. A vida dos moradores locais não era nada fácil sob domínio japonês, mas a retomada da região pelos chineses também teve um custo alto para a Manchúria. Ao mesmo tempo, a China vivia uma guerra entre o Kuomintang, o Partido Nacionalista Chinês então no poder, e os comunistas. Eram tempos conturbados. Vivendo em meio a guerras, presenciando a fome e a pobreza nas ruas em contraste com a riqueza dos senhores do Kuomitamg, Bao Qin aderiu à causa comunista. Para ela o regime comunista trazia também a promessa da emancipação das mulheres. Ao lado do pai de Chang, que ela conheceu quando ainda era uma estudante, Bao Qin apoiou a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung.
A partir daí eu não consigo mais resumir Cisnes Selvagens. Jung Chang conta com detalhes o que sua família sofreu nas décadas seguintes, quando aos poucos o sonho da China socialista virou para eles um pesadelo. A história é cheia de reviravoltas. De fieis adoradores de Mao, os pais de Chang se transformam em contrarrevolucionários, pelo menos aos olhos do governo. Fome, trabalhos forçados, perseguições políticas, censura, perda de direitos individuais, tudo isso é retratado ao longo do livro com exaustão, tanto que às vezes a narração chega a ser repetitiva.
Apesar de tudo que sua família sofreu, Jung Chang cresceu adorando Mao e talvez sua visão não mudasse se ela não tivesse ido viver fora. Ela se mudou para a Inglaterra em 1978 para cursar o doutorado em linguística e lá vive até hoje. Em Cisnes Selvagens ela não poupa críticas a Mao Tsé-Tung e sua Revolução Cultural. É um livro denso, com muitas informações que nos dão uma ideia do que a China viveu no século XX. Por trás desse contexto está a história das mulheres chinesas, uma história sofrida que ainda está sendo construída. Acho que Jung Chang prestou uma bela homenagem às mulheres de sua família com esse livro.
Cisnes Selvagens foi publicado originalmente em inglês, em 1991, e no Brasil em 2006, pela Companhia das Letras. A tradução é de Marcos Santarrita.
Mais alguns livros de escritores chineses:
- As boas mulheres da China, Xinran
- A montanha e o Rio, Da Chen
- Mudança, Mo Yan
- Balzac e a Costureirinha Chinesa, Dai Sijie
- Adeus , China – O Último Bailarino de Mao, Li Cunxin
- Tempo De Boas Preces, Yiyun Li
Saiba mais sobre o Projeto 198 Livros.