198 Livros: Somália – O pomar das almas perdidas

198 Livros - Somália

Eu sempre fui conhecida por ter uma excelente memória. É verdade que ela não é a mesma desde que meu filho nasceu, mas ainda tenho facilidade para memorizar dados. O estranho é que isso nunca se aplicou aos livros que leio. Sou péssima para lembrar detalhes das histórias. Não é que eu leia apressada ou desatenta. Por mais que eu ame um livro, geralmente depois de um tempo eu esqueço seus pormenores e guardo apenas as impressões que ele deixou em mim. Escrevendo os posts com atraso aqui no blog, isso fica ainda mais evidente. Por exemplo agora, ao falar sobre O pomar das almas perdidas, da escritora somali Nadifa Mohamed. Eu gostei muito do livro, mas na minha cabeça de hoje ele teima insistentemente em se misturar com o livro que li da Etiópia.

O pomar das almas perdidas tem mesmo algumas similaridades com Sob o Olhar do Leão, da escritora Maaza Mengiste. Ambos retratam o impacto de  guerras civis na vida de pessoas comuns e são ambientados em países africanos sob regimes ditatoriais. E por mostrarem crianças sofrendo eles me marcaram bastante. Mas não liguem para as minhas comparações, elas são apenas divagações de uma memória já não tão boa. O tema de hoje é o livro da Somália, então vamos a ele. Depois de rever minhas anotações, minha confusão já se desfez. Não se preocupem, não vou passar informações trocadas!

Na primeira parte de O pomar das almas perdidas somos apresentados a três gerações de mulheres: Kawsar, uma viúva de quase sessenta anos, Filsan, uma jovem soldado, e Deqo, uma garota de nove anos que nasceu e vive em um campo de refugiados. Estamos em Hargeisa, segunda maior cidade da Somália, no ano de 1987. O destino das três se entrelaça pela primeira vez na festa de Vinte e Um de Outubro, quando se comemora o aniversário de 18 anos da revolução, a data em que Siad Barre chegou ao poder e instaurou uma ditadura islâmico-socialista no país.

A imagem do governo vem sendo progressivamente abalada desde  a derrota da Somália no conflito contra a Etiópia na chamada Guerra de Ogaden. A insatisfação da população é visível, os problemas sociais se agravam e as rebeliões estão se intensificando no norte do país. O clima naquele suposto dia de festa é de tensão.

O pomar das almas perdidas, Nadifa Mohamed

Filsan faz parte da segurança do evento, Kawsar está ali como espectadora compulsória e Deqo, junto com outras crianças do seu orfanato, como dançarina em troca de um par de sapatos. Elas não se conhecem, mas Kawsar não consegue ficar inerte ao ver Deqo ser espancada após errar os passos de dança na apresentação. Sua atitude é considerada um grave desacato e ela é presa por isso. Filsan, cega por seu dever revolucionário e descontando em Kawsar suas frustrações pessoais, aplica uma medida desproporcional ao delito da senhora.

Nas páginas seguintes, vemos cada uma seguindo por caminhos diferentes enquanto em Hargeisa eclode a revolução que está levando a Somália a uma guerra civil. Na segunda parte do livro, conhecemos também o passado das três mulheres e entendemos melhor o que aconteceu para que elas estivessem como estão quando as conhecemos. E chegamos então à terceira e última parte, quando a história se fecha de uma forma muito bonita.

Sendo escrito por uma mulher e trazendo a visão de três personagens femininas, mesmo que através de um narrador em terceira pessoa, O pomar das almas perdidas evidencia de forma pungente a condição da mulher. Ele mostra aspectos da sociedade que costumamos classificar como culturais, como a mutilação genital, mas também exemplos de desigualdade de gênero que parecem universais. Se tem uma coisa que o Projeto 198 Livros já me ensinou, é que há diferentes graus de opressão, mas o machismo está presente em todos os lugares do mundo.

A autora Nadifa Mohamed nasceu em Hargeisa, em 1981. Ela se mudou com a família para Londres em 1986 e o que seria uma estadia temporária se transformou em permanente devidos aos conflitos que eclodiram na Somália. Sua experiência pessoal, sua sensibilidade e seu talento para a escrita, com certeza aliados a muita pesquisa histórica, deram origem a uma bela obra literária. O pomar das almas perdidas é um livro que indico não só para quem quer conhecer um pouco sobre a história recente de um país africano, mas a todos que gostam de uma boa história.

O pomar das almas perdidas foi publicado originalmente em inglês, em 2013, e no Brasil em 2014, pela Editora Tordesilhas. A tradução é de Otacílio Nunes.

Mais alguns escritores somalis:

  • Ayaan Hirsi Ali
  • Mohammad Ali Diriye

Saiba mais sobre o Projeto 198 Livros.

2 Comments

  1. Rubervam Du Nascimento

    Oi Camila, gostoso demais ler os teus comentários sobre os livros lidos por vc. Um feito e tanto. Diferente do que tenho acompanhado pela internet. Adorei os comentários sobre “o pomar das almas perdidas”, da excelente Nadifa Mohamed. Brigadão pelos marca páginas enviados ao meu endereço em Santo André/SP. Muito obrigado mesmo. Chegou até vc o meu “Espólio”, enviado pelos correios? Vou acompanhar vc mais de perto.

    • Camila Navarro

      Olá, Rubervam! Recebi sim, os marcadores que te enviei foram uma forma de agradecimento. Obrigada!

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