Nesses tempos em que paira sobre o mundo uma tentativa de manipular a História recente, vejo a literatura como uma excelente forma de nos contar como as coisas aconteceram. A ficção não é necessariamente inventada, pelo contrário. Não à toa dizemos que a arte imita a vida. Eu confesso que aprendi mais sobre História do Brasil lendo romances do que nos anos no banco da escola, graças à enorme pesquisa de excelentes romancistas. O Projeto 198 Livros tem me ajudado a expandir esse conhecimento e dessa vez a aula veio do livro A Hora Azul, do escritor peruano Alonso Cueto.
A Hora Azul é narrado em primeira pessoa por Adrián Ormache, um bem sucedido advogado de 42 anos que vive em Lima e tem uma vida perfeita com a mulher e duas filhas. Tudo vai muito bem até a morte da sua mãe. Organizando a papelada que ela deixou, Adrián encontra alguns documentos que jogam uma mancha sobre a memória de seu pai, também falecido. Por medo de que a história, que ele ainda desconhece, venha à tona e manche também a sua reputação, ele resolve investigá-la.
O pai de Adrián foi um oficial da Marinha Peruana que combateu o grupo guerrilheiro Sendero Luminoso na década de 80. Ao tentar desvendar o mistério de seu pai, ele descobre que era uma prática comum o sequestro de mulheres. Elas eram levadas ao quartel, estupradas por todos os homens e então assassinadas. Mas uma delas teve um destino diferente. O comandante Ormache se apaixonou por Miriam, uma garota indígena da região de Ayacucho, e não a repassou à tropa. Ele ficou com Miriam, mas ela fugiu. E agora a família de Adrián é subornada para manter esse segredo.
Tentando localizar Miriam, ele viaja até Huanta, na região de Ayacucho, e lá encontra um povo marcado pela dor, os sobreviventes de uma guerra. Quase todos têm histórias para contar, quase todos perderam alguém da família nos conflitos. Os indígenas e camponeses eram pressionados a ajudar os soldados e sofriam represálias dos senderistas e o contrário também acontecia. Os mais velhos se lembram e os mais novos agora lidam com as tragédias que seus pais sofreram.
A Hora Azul é um grande acerto de contas com o passado. Nesse romance não há mocinhos ou bandidos. A narrativa de Alonso Cueto nos mostra que tanto o governo peruano quanto os guerrilheiros do Sendero Luminoso agiam de forma muito parecida e que nessa disputa, como sempre, quem mais perdeu foram as pessoas comuns.
“Contaram um monte de coisas, montes de histórias de torturas e execuções. Mas o quê? Bem, histórias que eles contavam. Os oficiais botavam os corpos dos mortos em um barranco de lixo para que os porcos comessem e os familiares não pudessem reconhecê-los. Uma vez, três soldados mataram um bebê na frente da mãe e a estupraram junto do corpo do filhinho. Não continue, pediu. Bem, na verdade tudo isso era uma resposta àquilo que o Sendero Luminoso fazia: queimavam vivos os prisioneiros e colocavam cartazes nos cadáveres carbonizados. Um costume senderista muito disseminado: executar os prefeitos dos povoados diante da mulher e dos filhos. Matavam-nos na frente deles e os obrigavam a comemorar. Penduravam os cadáveres dos bebês em árvores.”
Estima-se que 70 mil pessoas morreram nessa guerra e que metade das mortes foram causadas pelo Sendero Luminoso, ou seja, a outra metade pelo governo. O livro foi publicado em 2005. Depois disso muito foi falado sobre o assunto, mas ele não está encerrado. Ainda há desaparecidos. As feridas não foram curadas e talvez nunca serão. Relatar esse passado é importante e não tenho dúvidas de que a literatura desempenha um grande papel nessa função.
A Hora Azul foi publicado originalmente em espanhol, em 2005, e no Brasil em 2006, pela Editora Objetiva. A tradução é de Eliana Aguiar.
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