É curioso ler livros europeus retratando o passado, especialmente biografias e afins, como é o caso de War and Turpentine, livro que o escritor belga Stefan Hertmans escreveu em homenagem ao avô, Urbain Martien. A realidade que essas obras nos apresentam difere muito da visão que hoje temos da Europa ocidental, especialmente a versão romantizada que temos como turistas.
War and Turpentine é baseado em dois cadernos que Urbain Martien escreveu, cerca de 600 páginas narrando sua vida, e com os quais presenteou o neto pouco antes de sua morte, em 1981. Stefan Hertmans levou uns bons anos para ter coragem de ler os relatos, mas, quando o fez, eles desvendaram muitos detalhes da vida do avô que até então ele desconhecia. E daí surgiu a ideia de homenageá-lo contando sua história.
“I could begin to understand what had gone on inside him all his life: the battle between the transcendent, which he yearned for, and the memory of death and destruction, which held him in its clutches.”
Urbain Martien nasceu em 1891 em Gent, na região flamenga da Bélgica, e teve uma infância pobre. O pai era um artista talentoso, mas seu ofício pintando afrescos nas igrejas pagava muito pouco. Para piorar, ele sofria de problemas respiratórios, provavelmente causado pelos componentes tóxicos das tintas e intensificados pelo ambiente úmido das igrejas. Isso no início do século XX, antes do surgimento dos antibióticos que poderiam ter salvado sua vida.
Urbain, que sonhava em seguir os passos do pai como pintor, é obrigado a deixar a arte e os estudos de lado. Aos 13 anos ele começa a trabalhar numa fundição, onde as condições de trabalho são precárias e os acidentes são comuns. Com a morte do pai a situação da família fica ainda mais difícil. A mãe é costureira, mas o dinheiro nunca é suficiente para alimentar todos os filhos.
Um dia um padre lhe diz que para rapazes como ele, sem dinheiro ou diploma, há apenas duas opções: ser soldado ou padre. Após uma semana num retiro jesuíta ele retorna para casa e toma uma decisão: vai para a escola militar. Durante quatro anos ele tem pela primeira vez a experiência de ser bem alimentado, vestido e calçado, mas também descobre os percalços da carreira militar e os embates causados pelas diferenças de classes sociais.
Na segunda parte do livro vemos tudo mudar novamente com a chegada da Primeira Guerra Mundial. Enquanto as outras duas partes trazem a visão de Urbain de forma indireta, nessa temos a narração com sua voz. E ele conta os horrores da guerra, a vida nas trincheiras, o dia a dia de espera, as batalhas, as doenças e a depressão que acomete os soldados conforme a guerra se prolonga. Mas seu olhar se fixa também nos animais que sofrem com a guerra dos homens e na natureza, que padece, mas também traz beleza e alívio em dias de tristeza.
Urbain é ferido e retorna ao campo de batalha algumas vezes até regressar de vez para casa. Mas estamos em 1919, quando mais uma tragédia assola o mundo: a gripe espanhola. E mais uma vez ele sofre uma grande perda. Na terceira parte do livro descobrimos como ele seguiu em frente, construiu uma família e teve na pintura sua maior forma de expressão. É uma bonita história de vida, com muitas passagens tristes pelo caminho, como muitas outras construídas diariamente, mas que não encontram ninguém para contá-las.
Tempos atrás li um comentário no Goodreads sobre um outro livro que dizia que histórias familiares só interessam às próprias famílias. Em alguns momentos lendo War and Turpentine eu também senti isso, pois a narrativa é muito real e à vezes cheia de detalhes que provavelmente só interessariam a quem de fato conhecesse o protagonista. Mas o livro é mais que isso. É um relato muito vívido da vida nos Flandres no final do século XIX e início do século XX, com todos os importantes eventos que marcaram o período.
War and Turpentine foi publicado originalmente em neerlandês em 2013, e em inglês em 2016, com a tradução de David McKay.
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Fiquei curiosa para ler. Ótima resenha, Camila!
Obrigada, Juliana! Eu ler um livro que você ainda não leu é quase novidade. =)