Eu passei o último fim de semana e mais algumas horas dos dias seguintes imersa no YouTube assistindo à 19ª Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, que aconteceu de 27 de novembro a 5 de dezembro de 2021. Confesso que em nenhum outro ano eu acompanhei tão de perto as mesas principais, mas ouso dizer que essa foi a melhor Flip de todos os tempos.
A Flip 2021 foi totalmente influenciada pelo momento em que vivemos, marcado pela ainda presente pandemia do coronavírus e pela crise climática. Em vez de um único curador, dessa vez a Flip contou com um coletivo de curadores, uma “floresta curatorial”. E em vez de homenagear um autor, ela prestou homenagem a pensadores, conhecedores e mestres indígenas que tiveram suas vidas interrompidas pela Covid-19: Zé Yté, Sibé Feliciano Lana. Higino Tenório, Maria de Lurdes, Meriná, Alípio Xinuli Irantxe e Domingos Venite.
O tema da festa foi Nhe’éry, plantas e literatura.
“Nhe’éry (pronuncia-se nheeri) é como o povo Guarani chama a Mata Atlântica, uma denominação que revela a pluriversalidade da floresta. Como explica o cineasta e liderança do povo Guarani Mbya, Carlos Papá, Nhe’éry quer dizer “onde as almas se banham”. Além disso, Nhe’éry também conduz mensagens através de fios de palavras.”
Como bem disse Ailton Krenak na mesa de encerramento, “A epidemia não vem para ensinar, mas para matar. Não sei de onde vem essa mentalidade branca de que o sofrimento ensina alguma coisa.” Eu não vou falar em parte boa da pandemia, pois acho essa expressão até mesmo desrespeitosa com as mais de 600 mil vidas perdidas só no Brasil, mas é fato que a impossibilidade de realização de eventos presenciais fez com que eles migrassem para o meio digital, como aconteceu com a própria Flip. Isso possibilitou o acesso a muitos eventos culturais a quem está fora do eixo Rio-São Paulo. Foi assim que no último sábado me vi assistindo a um bate-papo entre Ana Martins Marques e Alejandro Zambra e a partir de então a atmosfera da Flip 2021 me envolveu de tal forma que culminou neste post.
Depois de assistir a todas as mesas da programação principal, posso dizer que a Flip 2021 conseguiu que o evento tivesse uma voz coletiva muito especial. Os autores, pensadores e conhecedores convidados em geral estavam em boa sintonia e trouxeram uma mensagem muito clara: precisamos mudar a forma de nos relacionarmos com o mundo se quisermos sobreviver.
É desanimador olhar para o lado e ver tanto negacionismo e desinformação, então a Flip 2021 prestou um importante papel ao dar voz a quem tem consciência de que só chegamos à crise atual porque o homem erroneamente pensou que era superior às espécies não humanas. E aqui, quando falo homem, me refiro especialmente ao homem branco europeu, que empreendeu uma política de colonização que perdura há séculos e impõe um modelo de vida predatório como modelo ao restante do mundo. Os povos originários, por sua vez, mantém uma relação muito diferente com a natureza e nos demonstram que existem outras formas de habitar esse planeta.
Assim como acredito que temos muito a aprender com as plantas, também acredito que a arte pode nos ensinar muita coisa. Não vejo forma mais fácil de se colocar no lugar do outro que através das páginas de um livro. Num momento em que precisamos tanto exercer a alteridade, a literatura pode ser uma grande aliada. Nem todas as pessoas têm a chance de visitar um território indígena, por exemplo, mas todos podem conhecer os livros de escritores indígenas e assim se familiarizar não só com suas lendas e tradições, mas com seu modo de vida hoje. São eles, junto com os quilombolas, os grandes guardiões das nossas matas e é preciso que essa verdade seja mais conhecida.
Nesses quase dois anos de pandemia, quem é que não colocou mais uma planta na sala de casa? Eu mesma nesse tempo vi crescer uma linda jiboia que agora emoldura minha estante. Mas será que paramos para pensar na importância vital das plantas para nossas vidas? Elas simplesmente nos fornecem as duas coisas indispensáveis para nossa existência: o oxigênio e a comida. Pois mesmo quem come carne indiretamente está consumindo as plantas que os animais ingeriram. Nós não somos nada sem o mundo vegetal e acho que nos falta humildade para reconheceremos isso. Melhor ainda seria reconhecermos que não somos melhores do que nenhuma outra espécie. Na verdade, não somos nem mesmo a mais inteligente, pois nossas ações estão nos levando à nossa própria extinção.
Sei que não são as atitudes individuais que salvarão o mundo, mas isso não é desculpa para nos acomodarmos e fingirmos ignorância. A Amazônia está chegando ao ponto de não retorno, o Cerrado já foi praticamente destruído pelas monoculturas, da Mata Atlântica só resta um pequenino pedaço. As epidemias são causadas pela destruição das florestas e pela exploração animal para consumo humano. Caso não empreendamos mudanças (e rápido!), a crise climática não será reversível, com graves consequências para nossa segurança alimentar, e as pandemias serão cada vez mais comuns.
Ouvir escritores que admiro falando desses assuntos foi realmente gratificante para mim. Eu ia deixar aqui a lista das minhas mesas preferidas, mas elas somavam mais da metade. Recomendo então que, se você não acompanhou o evento on-line, que agora também mergulhe nos vídeos e se deixe envolver pela atmosfera da vida vegetal. Torço para que eles sejam inspiradores para vocês como foram para mim.
Todas as mesas da programação principal da Flip 2021 estão disponíveis no YouTube em três opções: áudio original, português e inglês.
Espero ainda ter a oportunidade de ir novamente a uma Flip, como fiz em 2019. Mais ainda, espero que ela mantenha o espírito de cooperação e continue respeitando as diferentes formas de vida no mundo, humanas e não humanas. Desejo de verdade que a Flip 2021 renda frutos, ou melhor, que ela espalhe muitas sementes capazes de reflorestar mentes e espaços. É essa a nossa única esperança.