Mesmo se você não souber apontá-lo no mapa, deve ter visto seu nome na etiqueta de alguma roupa “Made in Bangladesh”. O país, empobrecido pela colonização europeia durante séculos, hoje continua a ser explorado principalmente pela indústria da moda, que paga baixíssimos salários e não fornece condições mínimas de trabalho. Provavelmente você se lembra de cenas tristes de prédios desabando em Dhaka e matando os trabalhadores, em sua maioria jovens mulheres que fabricam as roupas de marcas caras e fast fashion que são vendidas em todo o mundo. Mas não é sobre isso que fala o livro River of My Blood, da escritora Selina Hossain, mas de um momento um pouco anterior na história do país.
River of My Blood conta a história de Boori, uma garota que cresce num pequeno vilarejo no interior de Bangladesh. A família é pobre, mas ela, a mais nova de doze irmãos, vive cercada de amor. A única coisa de que ela não gosta é seu nome, que significa “Velha Senhora”. Como um pai que ama sua filha pode nomeá-la assim? Mas, fora isso, sua infância é feliz e despreocupada. Boori é muito cheia de vida. Quando termina a educação primária, ela para de estudar. Só os meninos continuavam na escola depois disso e ela não vê nenhum problema, afinal, já sabia ler e escrever e não precisava de saber mais que isso.
Depois que o pai morre, o irmão mais velho decide casá-la com o primo Gafoor. A mãe não tem certeza se essa é a escolha certa, pois Gafoor é muito mais velho, viúvo e pai de dois filos, mas o irmão agora é o responsável pela família e as mulheres não têm que dar palpite. Apesar do prognóstico, Boori é feliz no casamento, mas ela tem um espírito muito inquieto para se contentar apenas com o amor do marido e os cuidados com os enteados, que estão crescendo.
Quando criança, Boori ouvia o trem passando e sentia um desejo insaciável de saber que mundo havia depois que a estrada acabava. Agora, restrita ao lar e tendo mais noção, mesmo que inconscientemente, do que pode alcançar, ela sonha em engravidar. É nessa parte que a cultura e a religião são explorados mais a fundo no livro. No sexto ano de casamento Boori realiza seu sonho e dá a luz ao filho Rais. Ele é um grande motivo de alegria para a mãe, mas também uma fonte de preocupação, pois é um garoto com deficiência.
Esse é o contexto familiar de River of My Blood, que por si só já seria interessante, especialmente por retratar a cultura local e a situação da mulher num contexto patriarcal e machista. Mas esse de certa forma é só o começo, pois a vida de Boori sofre uma reviravolta quando a Guerra de Independência de Bangladesh chega a seu pequeno vilarejo.
“She had never come anywhere close to war. She didn’t know what it would be like. Calls for ‘Pakistan Zindabad’ had reached the village a few days after her marriage to Gafoor. She didn’t understand how the new country was born. She just knew that they had been ‘liberated’, hearing from her elders that the English had ‘washed their hands off India’ and left the country in a stampede. […] No one talked about war then. No one was terrified of it either. She recalled boys playing joyfully with green and white flags, like butterflies fluttering in their hands. Some of the villagers had made a fuss about it, whilst others cheered and sang prayers. It was all in good humour. But now the word ‘independence’ meant war.”
Como toda guerra, o conflito contra o Paquistão que em 1971 levou à independência de Bangladesh (antes Paquistão Oriental) é um capítulo muito triste de sua História, apesar do final feliz. Uma coisa é vermos o números de mortos oficial, outra é conhecermos a história das pessoas que fazem parte da lista, mesmo que ficcionais. Há vários momentos de cortar o coração no livro, mas o final é realmente devastador.
Algo que é tratado brevemente em River of My Blood, mas que não posso deixar de mencionar são as monções. No momento as fortes chuvas estão causando a pior inundação das últimas décadas em Bangladesh. O país é um dos mais vulneráveis às mudanças climáticas e milhões de bengalis já se tornaram refugiados climáticos. No post anterior, sobre Kiribati, eu também falei do assunto. Frear as mudanças climáticas é realmente urgente e deveria ser assunto de todas as nossas conversas.
River of My Blood foi publicado originalmente em bengali, em 2003, e em inglês em 2016, pela Rupa Publications India. A tradução é de Jackie Kabir.
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