Há muito tempo eu pesquisava escritores da Tanzânia para o Projeto 198 Livros e apenas dois nomes apareciam nas minhas buscas: Mohamed Yunus Rafiq e Abdulrazak Gurnah. Do primeiro eu não encontrava nenhum livro disponível, mas do segundo sim, então era nele que eu concentrava minhas opções para o país. Dentre seus livros à venda, escolhi o mais recente: Afterlives, publicado no Reino Unido em 2020.
E então, no final de 2021, Abdulrazak Gurnah ganhou o Nobel de Literatura. Que alegria eu senti ao ver aquele anúncio! Na época eu ainda não tinha lido o livro da Tanzânia, mas ver um escritor africano e negro receber um prêmio tão importante é sempre um motivo de celebração. Sem contar que assim havia a certeza de que em breve suas obras estariam disponíveis no Brasil. Acabei lendo Afterlives no original, antes que ele saísse em português, mas no início de 2022 a Companhia das Letras o publicou aqui com o título Sobrevidas, com a tradução de Caetano Galindo.
Afterlives é um romance que explora a vida de diferentes personagens ao longo de algumas décadas. No início do século passado, o casal Khalifa e Bi Asha está tentando ter seu primeiro filho. Ele é filho de pai indiano e mãe africana e ela filha do mercador para o qual ele trabalha. Ilyas foi sequestrado ainda criança por um soldado da Schutztruppe (Força de Proteção, o exército alemão nos territórios africanos colonizados) e criado em um seminário cristão. Afiya é sua irmã. Após ficar órfã, ela vai viver com seus tios na cidade, mas na casa deles sofre violências e explorações. Temos ainda Hamza. O pai o vendeu a um fazendeiro, mas ele fugiu e se juntou à Schutztruppe. O caminho de todos esses personagens se cruza em certo momento e os encontros dão rumo à narrativa.
Observar como funcionava a Schutztruppe é revoltante. A tropa era formada principalmente por militares alemães voluntários e por solados nativos, os askari, renomados por sua crueldade. Alguns, como Hanza, se tornaram askari para fugir de outras formas de opressão. Outros, como Ilyas, foram doutrinados e se sentem alinhados com os alemães, então se tornam soldados a serviço do colonizador com convicção. Ver os askari se voltando contra seu próprio povo mostra uma das faces perversas da colonização.
A vasta teia de personagens de Sobrevidas pode parecer confusa a princípio, mas não é. Abdulrazak Gurnah consegue desenvolver bem a história de cada um e ainda nos dar um bom panorama do contexto histórico-social da região da Tanzânia, sob disputa de alemães e ingleses na primeira metade do século passado, sem que a leitura seja enfadonha. E, apesar de tratar de histórias de vidas marcadas por violência e opressão, há também fortes exemplos de solidariedade. Eu achei o livro muito fluido e envolvente.
Imagino que Sobrevidas seja o primeiro romance tanzaniano em português e que bom agora podermos contar com mais literatura africana por aqui! Acredito que só temos a ganhar quando lemos obras desse continente tão diverso e com ligações tão fortes com o Brasil.
Afterlives foi publicado originalmente em inglês, em 2020, pela Bloomsbury Publishing. Ele foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 2022, sob o título Sobrevidas, com tradução de Caetano W. Galindo.
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Fiquei bem interessada em ler esse livro e conhecer mais sobre a história desse continente tão diverso. Muito obrigada, Camila, por mais um texto tão bom!
Você conhece o Leituras Compartilhadas, da Ju e do Kalebe? Eles lerão esse livro em breve.
Não conheço… Vou procurar 😊 Muito obrigada pela dica, Camila!