É engraçado pensar que se eu tivesse lido o Canadá no início do projeto com certeza não escolheria um livro como Five Little Indians, romance de Michelle Good. E não só pelo fato de ele ter sido publicado recentemente, mas principalmente porque na época nem mesmo passaria pela minha cabeça procurar por uma escritora indígena canadense. Hoje inclusive me arrependo de algumas escolhas de livros que fiz, mas, em vez de julgar a Camila do passado, prefiro celebrar minha capacidade de enxergar o mundo com outros olhos, evolução que eu espero que seja constante e na qual esse projeto tem uma grande participação.
Five Little Indians é o livro de estreia da escritora de origem Cree Michelle Good. O povo Cree é originário da América do Norte e hoje é o maior grupo indígena do Canadá, com uma população de mais de 350 mil pessoas. O romance é uma obra de ficção, mas traz muito da história da mãe e da avó de Michelle e da sua própria experiência como advogada de sobreviventes das escolas residenciais indígenas do Canadá.
Pode parecer estranho falar em sobreviventes de escolas, mas “a Comissão da Verdade e da Reconciliação do Canadá (CVRC) concluiu, em 2015, que 1 em cada 50 crianças que frequentavam residências escolares morreu nessas instituições” e “estima-se que 150 mil crianças tenham sido retiradas de seus lares e levadas a internatos, num processo que durou até a década de 1990”, como conta esta matéria da BBC sobre o assunto.
Five Little Indians conta a história de cinco crianças indígenas que foram tiradas de seus lares e levadas para uma dessas escolas. Acompanhamos Lucy, Clara, Maisie, Kenny e Howie até a vida adulta, quando tentam reconstruir suas vidas. Na verdade eles saem da escola ainda adolescentes. Uns foram liberados, outros deram um jeito de escapar. Após viverem anos sob uma disciplina que tentava apagar seus laços com suas origens, em que até falar sua língua mãe era motivo de castigo, eles não têm para onde voltar.
“Lucy left the lights off and quietly sat at the kitchen table. She watched the usual goings-on outside her window but remained distracted and overwhelmed by the flood of memories she’d worked so hard to keep below the surface. Clara had been there with her at the Mission School, but she was older and they hadn’t talked about it much. It was an unspoken agreement between them: the past was the past. It’s hard to run from the past, but once stuffed away, they knew it couldn’t be allowed to poison the present. They couldn’t be who they were now, with their lipstick, paycheques and rooms, if they were also those children, or the children who’d left the other children behind.”
As histórias das crianças são contadas separadamente, até porque na escola meninos e meninas viviam completamente apartados. E, apesar de terem sofrido abusos parecidos, a experiência de cada um é única. O caminho deles se cruza em Vancouver, onde, cada um a seu modo, buscam uma vida melhor. Mas, além de terem que lidar com os traumas que carregam, eles enfrentam muito racismo. Nesse ponto acho que a situação não é diferente da que os povos originários enfrentam no Brasil.
O livro não é só uma forma de trazer à tona um assunto que precisa ser amplamente conhecido e debatido no Canadá e no mundo, mas também um romance delicioso de se ler. Fiquei muito feliz por ter escolhido Five Little Indians e por ter a chance de ler um livro que ao mesmo tempo me ensinou e me proporcionou uma experiência maravilhosa de leitura. Em momentos assim sou ainda mais grata ao Projeto 198 Livros!
Five Little Indians foi publicado originalmente em inglês, em 2020, pela HarperCollins.
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Mais uma história “soco no estômago”… Mas que possamos um dia (urgentemente) aprender com os absurdos já cometidos (e que ainda são cometidos, infelizmente).
Vou agradecer à Camila do passado e a do presente por todas as leituras e todos os ensinamentos compartilhados! =)
Obrigada, Cris! Você é sempre uma querida!