Que privilégio foi ler o livro de Burkina Faso! Eu não poderia imaginar que o penúltimo país do Projeto 198 Livros pudesse me ensinar tanto, não a essa altura do campeonato. Eu não acho que já sei tudo, muito pelo contrário, mas são raras as leituras capazes de mudar nossa forma de enxergar o mundo. Pois foi isso que Of Water and the Spirit, livro do escritor burquinense Malidoma Patrice Somé, fez comigo.
Of Water and the Spirit: Ritual, Magic and Initiation in the Life of an African Shaman é uma autobiografia de Malidoma Patrice Somé. Na contracapa do livro também há a sinalização de Espiritualidade e Estudos Africanos como temas e acho que todas essas classificações são aplicáveis. Nele Malidoma narra como foi apartado de seu povo quando era uma criança e como foi seu retorno, anos depois. Ele nasceu em 1956 em uma comunidade Dagara perto de Dano, em Burkina Faso.
O povo Dagara tem língua e cultura próprias e se espalha por áreas ao redor da fronteira tríplice de Gana, Costa do Marfim e Burkina Faso. As responsabilidades de homens e mulheres na comunidade têm delimitações rígidas. A eles cabem as decisões políticas, a segurança da família, o preparo de remédios e as práticas espirituais que mantêm a ligação dos viventes com seus ancestrais. Já elas cuidam da família, da cozinha, da agricultura e do manejo de provisões.
Malidoma era muito próximo do avô, o chefe e líder espiritual de uma família com mais de 50 pessoas. Enquanto seus pais se aproximaram dos padres e passaram a frequentar a igreja, o avô apontava Malidoma como seu sucessor. Mas o avô morreu quando o garoto tinha apenas 4 anos e logo após o funeral um padre o sequestrou e o levou para viver numa missão jesuítica que ficava a menos de 10 km de sua casa, mas que mesmo assim ele não podia visitar. Lá ele teve que aprender língua e costumes europeus e a renegar, pelo menos aparentemente, sua cultura. Essa parte da história eu acho que nem preciso explicar, pois foi o que a igreja fez com todos os povos originários, seja nas Américas, na Ásia ou na Oceania.
Mais de 15 anos depois, Malidoma fugiu da missão e voltou para casa, mas para a comunidade ele era quase um estranho. Seus hábitos de “branco” eram muito diferentes do modo de vida ali e ele perdeu muita coisa enquanto esteve longe. Para se reintegrar, ele aceitou a proposta dos anciãos de participar do ritual de iniciação pelo qual todo jovem Dagara precisa passar. Ele se juntou a um grupo de garotos de 12 ou 13 anos que passariam pelo desafio, enquanto ele já tinha 20. O risco era grande. Quem não tivesse a força física ou mental para superar as provas não sobreviveria, mas Malidoma conseguiu, é claro, ou esse livro nem existiria.
Malidoma descreve detalhadamente o ritual de iniciação bem como o funeral de seu avô e é aí que o intercâmbio entre os mundos físico e espiritual ficam mais evidentes. A sensação que eu tive foi semelhante à de quando li A Queda do Céu , Palavras de um xamã yanomami , de Davi Kopenawa e Bruce Albert. A primeira reação de um cérebro racional, moldado pela cultura branco-europeia, é taxar tudo como fantástico ou tentar encontrar explicações validadas pela ciência moderna. Nossa tendência é dizer que se tratam de experiências vividas apenas mentalmente, como alucinações, por exemplo. Acho que eu também fazia isso e foi só lendo Of Water and the Spirit que percebi. Hoje eu apenas assumo que não sei tudo e tenho a humildade de reconhecer que não sou capaz e nem tenho autorização de julgar a veracidade da vivência de uma cultura que não é a minha.
Se você quiser conhecer um pouquinho da cultura Dagara, encontrei um vídeo muito bonitinho, feito pra crianças, cujo texto é inspirado na obra de Sobonfu Somé, que foi casada com Malidoma. Aqui está: História do Povo Dagara “quando uma criança nasce”. O conteúdo conversa bem com o do livro e mostra a profunda conexão com o mundo espiritual, tão importante para o povo Dagara.
Of Water and the Spirit foi publicado originalmente em inglês, em 1994, por Tarcher/Putnam. A edição que li, de 1995, é da Penguin Books.
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